Conto 07 – Sob a Miragem Cerúlea (Marco Antônio Fischer; Crônicas do Mar de Prata)

Planeta Teslar, Deserto de Gálam-Makur – Ano 3254 da Ordem dos Senhores de Castelo

Herika ajustou os óculos de proteção sobre o rosto, se agachando no topo da imensa duna enquanto esperava. Os raios de sol refletiam nas lentes escuras e clareavam os cabelos curtos e loiros, cujas madeixas escapavam através da bandana branca presa à cabeça. O calor do deserto causticava a pele exposta da garota, que estava coberta acima da cintura apenas por um top de tecido marrom. Uma tatuagem de duas serpentes entrelaçadas cobria quase inteiramente as suas costas, percorrendo toda a linha entre o pescoço e o quadril.
Várias ferramentas cintilavam em seu cinto, fazendo a folgada calça de couro gasto pender de lado com o peso. A temperatura parecia não incomodá-la. Ela sabia que eram as condições perfeitas para encontrar aquilo que havia passado os últimos meses procurando. O ar estava parado e silencioso, e o sol estava quase chegando ao ápice do meio-dia. Falta pouco, pensou Herika, fazendo sombra com a mão sobre o rosto e se inclinando para frente com ansiedade.
Os relatos que colhera entre os nômades de Gálam-Makur haviam conduzido a jovem Exploradora do Multiverso até aquele ponto isolado de Teslar. Não havia sido tarefa fácil chegar até o local, muito menos localizá-lo em meio ao mar de areia. Montada em Lokang, o estoico lagarto gigante que havia comprado de uma caravana, Herika atravessou quilômetros de uma vastidão vazia e perigosa, guiada apenas por indicações vagas e por sua intuição. Mesmo que aquele não fosse o lugar certo, ela estava obstinada a continuar a jornada enquanto lhe restassem forças, pois estava certa de que seu esforço seria recompensado.
Então ela viu. Abrindo um largo sorriso, a garota se levantou rapidamente, fazendo Lokang resmungar com um grunhido. Saltando na encosta da duna, ela caiu sentada e escorregou até a base, retirando os óculos de couro e ficando sem fôlego perante aquilo que surgia a sua frente.
Abaixo da duna onde Herika estava havia uma espécie de vale oculto no deserto, uma extensão plana de areia que parecia não ser afetada pelo vento. Ela havia descoberto a razão algumas horas antes, quando ainda estava examinando o local. Aquele vale era na verdade um fosso de areia movediça, uma armadilha mortal para viajantes menos experientes. Mas a exploradora sentiu que havia algo mais, algo que enfim se revelou quando a luz do sol incidiu diretamente sobre o fosso, se transformando aos poucos em uma cortina de luz azulada.
O fenômeno, que lembrava bastante uma aurora boreal, tremeluzia bem diante de seus olhos, se estendendo do solo até acima das dunas. A areia do vale refletia como um espelho a luz etérea, tingindo cada um de seus grãos com a mesma tonalidade celeste. Mesmo de perto, aquela paisagem poderia ser facilmente confundida com um lago de águas cintilantes, embora fosse feita apenas de pó.
-É mais bonito do que pensei – disse Herika se apoiando na areia – mas agora é hora de trabalhar!
A garota se levantou e enfiou a mão em um dos grandes bolsos da calça, retirando uma esfera metálica do tamanho de uma laranja, composta por várias peças unidas em torno de um eixo central. O interior do artefato pulsava com uma luz dourada e intensa. Armando a esfera com vários encaixes e cliques, Herika pressionou seu topo e a lançou com força para dentro do vale, correndo em seguida para se proteger atrás da duna.
A explosão que veio a seguir fez com que o deserto ao redor estremecesse, impelindo uma gigantesca nuvem de poeira azulada para cima. No entanto, ao invés de assentar aos poucos, a nuvem permaneceu pairando no ar, como neblina. Em meio ao ar carregado de uma névoa cintilante, Herika caminhou devagar, tossindo e espanando areia do corpo. Ela olhou ao redor com satisfação e se dirigiu para onde estava o vale, deixando que alguns grãos caíssem como neve sobre sua palma estendida, enquanto observava a cratera que havia ficado incontáveis anos escondida, coberta pela areia do vale.
A fina poeira azul escorreu entre os dedos de Herika, evaporando em uma tênue chama cerúlea ao tocar o solo. Enquanto desenrolava a corda de escalada da cintura, ela olhou para a duna, tentando perceber algum sinal de que Lokang ainda estava lá. Seria um belo inconveniente se o lagarto tivesse fugido assustado com a explosão, levando os suprimentos de viagem consigo. Mas ele não iria muito longe de qualquer forma, e havia coisas mais urgentes com que se preocupar.
Ela já começava a ouvir as vozes confusas, murmúrios vagos em sua cabeça. A neblina azul estava aos poucos se concentrando mais próxima do solo, e seus efeitos estavam começando a se manifestar sobre Herika. Amarrando a bandana sobre o rosto, ela tentou calcular quanto tempo levaria para a cratera ficar mais uma vez coberta de pó.
Não teria mais do que alguns minutos, pelo que podia se lembrar da última vez em que entrara em contato com a estranha areia cor de safira, meses atrás, em um outro universo.
Enquanto descia rapidamente pela corda, Herika tentava ignorar a superestimulação dos sentidos, causada pela poeira diluída no ar. As mudanças causadas pela luz, a instabilidade e as aparentes alucinações eram apenas as características superficiais daquela estranha areia, que muito se assemelhava a um pó de cristal muito fino. A exploradora sabia que ela podia ser encontrada em uma infinidade de planetas, recebendo diferentes nomes. Na última vez em que havia examinado aquele material, antes de ingressar em Teslar, ele era conhecido como Pó de Maru. Um nome adequado, já que a poeira parecia reagir às frequências elementares da matéria.
E era por isso que Herika viajava aos confins mais distantes do Multiverso seguindo a trilha daquele Pó. Em mais de um planeta ela havia encontrado depósitos como o fosso em Gálam-Makur. Alguns deles manifestavam com clareza e força suas propriedades, sendo muitas vezes utilizados por magos como objeto de pesquisa e matéria-prima. Já outros, como o do Deserto da Solidão, em Agabier, possuíam uma
intensidade tão pálida e inofensiva que eram quase imperceptíveis. Mas nenhum outro depósito já encontrado pela garota possuía a potência daquele recanto perdido de Teslar, onde ela acreditava estar a fonte de todo o Pó de Maru.
Pois deveria haver uma fonte. Essa seria a única explicação para o fato de todos os demais lugares onde o Pó se manifestava não conterem nada além da areia cerúlea. Herika ainda estaria tateando no escuro, se a resposta não tivesse vindo até ela de maneira tão clara, durante uma de suas pesquisas sobre o Maru. Entrelaçamento quântico. O fenômeno que faz com que dois objetos com uma ligação extremamente forte possam transmitir informações entre si, mesmo estando separados em universos diferentes. Era isso que tornava possível a comunicação a distância entre planetas distintos, e em níveis mais elevados até mesmo o teletransporte entre mundos.
Cada grão do Pó de Maru estava interligado nesse entrelaçamento. O motivo desse emaranhamento era algo que só podia ser especulado, mas provavelmente a poeira vinha de uma mesma origem, talvez um gigantesco cristal mágico que há séculos tenha se estilhaçado pelo Multiverso. Espalhados por planetas diferentes, eles estavam todos reagindo a um mesmo estímulo. Que era nada menos que a presença daquilo que estava contido naquela cratera oculta, talvez jamais vista por olhos humanos.
As faíscas do bastão de luz demoraram alguns segundos para iluminar as paredes de rocha imemorial. A cratera era apenas a entrada de um salão muito maior, onde alguns fragmentos de cristal do tamanho de um
tronco de árvore se espalhavam pelos cantos. Alguns deles pareciam conter runas e mecanismos intricados e desconhecidos. Mesmo intocados pela luz do sol, eles pulsavam com uma suave luz azul, alimentados pela energia da colossal criatura que ali estava adormecida.
Um Gaiagon. Herika arregalou os olhos quando se deu conta do que havia descoberto. Um ser imemorial, hibernando a centenas de anos abaixo das areias de Gálam-Makur, embalado pelo som do vento nas dunas. Ela conhecia mais de uma dezena de autoridades influentes e magos poderosos que dariam qualquer coisa para encontra-lo. Mas não era a criatura que importava afinal. Deveria haver uma joia ali em algum lugar, uma joia de poder incalculável, pelo que ela sabia. E talvez ela pudesse encontra-la e removê-la sem despertá-lo.
– Continue sonhando, meu amor – disse a garota retirando uma pinça de aspecto cromado, que lembrava uma garra serrilhada – não vai doer nada.
De repente algo saltou sobre as costas de Herika, vindo das sombras da caverna. Se virando por reflexo, a exploradora enfiou a pinça no rosto da criatura, que sibilou de dor enquanto a ferramenta estalava e aquecia, até que ela caísse ao chão se contorcendo. Soltando o instrumento que agora estava arruinado e exalava fumaça, Herika iluminou o estranho ser com o bastão, fazendo uma careta de desagrado. A coisa se parecia com um inseto, de corpo segmentado e cristalino. Pernas compridas e delgadas golpeavam o ar em espasmos, e uma cauda de ferrão se enrodilhava sobre o ventre encouraçado. Na cabeça crustácea, dois longos apêndices purpúreos tentavam fracamente se movimentar, tostados pela pinça.
Ouvindo um leve zumbido, Herika levantou o bastão de luz e olhou ao seu redor. Uma multidão dos seres cristalinos se aproximava agora, os apêndices violeta que mais pareciam antenas balançando freneticamente. Eram devoradores de éter, parasitas que se alimentam de magia, podendo ser encontrados em vários pontos do Multiverso.
Provavelmente eles haviam sido atraídos até ali pelas energias do Gaiagon, ou talvez estivessem dentro da estrutura de cristal que formou a areia azulada. Mas enquanto o colosso parecia não se incomodar com eles mais do que alguém com sono pesado se incomodaria com mosquitos, uma humana sozinha seria coberta até sufocar, aferroada até a morte caso reagisse. Porém, havia um motivo pelo qual ela havia atraído as criaturas.
– Estragaram meu dia, seus nojentos! – resmungou Herika, pisando com força no devorador caído – agora vão ter o que estão procurando!
A garota lançou o bastão faiscante ao chão, retirando da cintura um cabo de cimitarra sem lâmina. Fazendo um movimento sinuoso, ela sussurrou algumas palavras inaudíveis e uma torrente de chamas irrompeu do cabo, fazendo com que os insetos recuassem alguns centímetros. Mas assim que a chama se acomodou na forma de uma lâmina curva, os devoradores de éter sentiram o doce aroma da magia e avançaram famintos sobre Herika.
O primeiro devorador de éter que saltou foi cortado ao meio antes de chegar ao chão. Acompanhando o rastro flamejante da cimitarra, Herika rodopiou e disparou um jato ardente de sua outra mão, atingindo outro
inseto, que se despedaçou em fragmentos carbonizados. Mas cada golpe de sua cimitarra mágica e cada disparo de energia apenas atiçava mais as criaturas. Ela tinha que pensar em um jeito de fugir antes que a neblina, que agora já havia descido até a cratera, se tornasse novamente sólida bloqueando a única saída.
Utilizar outra bomba na areia estava fora de questão, visto que ela ainda estava instável e poderia explodir em uma onda de fogo azulado, matando a garota no processo. Despertar o Gaiagon também não seria
uma ideia brilhante, e ela nem sabia se isso era possível. Então lhe veio uma ideia que, apesar de arriscada, pelo menos poderia tirá-la viva dali. Enquanto colocava a mão no bolso para tirar outra bomba, um dos monstros aproveitou para agarrar seu braço com as antenas violeta. A exploradora se sentiu fraquejar, e sua espada se apagou.
Mais dois saltaram sobre seu corpo, tateando com os apêndices na direção de seu pescoço.
Então, em um ímpeto de fúria, Herika liberou suas reservas mais profundas de energia, fazendo a espada arder em chamas mais uma vez e varrendo as criaturas sobre ela com um grito de dor. O golpe desesperado lançou uma onda de fogo sobre os devoradores que se aproximavam, fazendo com que eles recuassem mais uma vez. Ofegante, ela lançou a esfera de metal contra um dos cristais maiores no salão de pedra, correndo em direção à corda que a havia trazido até ali.
Parte dos devoradores de éter avançou cegamente na direção da bomba mágica, mas alguns insistiram em perseguir a garota. Ela sentia as antenas roçarem em seus calcanhares, devorando a cada toque suas últimas forças. Mas tentar retardá-los agora seria morte certa. Se agarrando na corda de escalada, ela subiu freneticamente, se encolhendo assim que alcançou a cratera e esperando a explosão.
Uma chuva de estilhaços de cristal atingiu as criaturas quando a esfera detonou. Feridos e confusos, os devoradores fugiram na direção do Gaiagon adormecido, buscando refúgio. Herika fechou os olhos e deu um suspiro de alívio. Porém, quando os reabriu, se percebeu no meio de uma imensidão vazia e azul. E seu corpo parecia querer se deixar sumir e flutuar, unindo-se aquele oceano de luz cerúlea.
Era o efeito do Pó de Maru que a recobria. A corda de escalada parecia ser a única coisa física em meio ao infinito. Sua dor e seu cansaço estavam se diluindo no azul, junto com sua existência. Ela se esforçou ao máximo para se manter consciente, e sabia que só havia uma coisa a fazer. Prendendo a respiração, ela continuou a subir a corda, mesmo que ela agora se espiralasse e ondulasse como uma fita dourada e uniforme até o limite da visão.
Herika não seria capaz de dizer o quão difícil e demorada foi sua subida até a superfície. As noções de tempo e espaço haviam desaparecido por completo, junto com a maioria das sensações de seu corpo. A única coisa de que conseguia lembrar era o clarão branco que surgiu ao final, quando a luz do sol finalmente alcançou seus olhos. Pouco depois, ela sentiu a corda terminar e se projetou para fora da cratera, sentindo que nascia outra vez quando devagar foi recuperando os sentidos.
O calor do deserto queimava sua pele e o clarão do dia ofuscava sua visão. Ao se levantar, ela se sentia extremamente tonta, como se acabasse de acordar de um pesadelo. Deixando a areia, agora branca outra vez, escorrer de seu corpo enquanto andava, ela escalou lentamente a duna até o topo. Só depois de alguns momentos é que ela percebeu que havia algo faltando ali. Lokang.
– Eu vou matar aquele lagarto – protestou Herika, colocando os óculos de proteção e começando seu longo caminho de volta pela imensidão deserta de Gálam-Makur.

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