Conto 04 – Do primeiro dia, nasce um herói (por Carolina Trindade Ferreira)

Do Primeiro Dia, nasce um herói

“Há muitos e muitos éons, viveu um homem mais forte e mais corajoso do que qualquer um…”

Seus pés pequenos roçavam o chão pedregoso e áspero, reabrindo feridas antigas na sola e na alma. O jovenzinho corria como o vento, e o ar gelado da manhã varria as lágrimas de seu rosto.

“Mas, anina, o que são éons?”

Ele ainda ouvia a voz rouca de sua avó rindo de suas perguntas sem fim. Ele correu mais ainda. A luz difusa de uma das luas do planeta iluminava seu caminho enquanto o sol não surgia.

“O povo da anina, os antepassados do pequeno Jor, contavam o tempo assim. Era um povo sábio, justo, mas um grande mal caiu sobre eles, lá nos confins do Multiverso…”

“Mas, anina…!” O menino Jor insistia, vendo uma única lágrima rolar dos olhos da avó. “O que são confins?”

“É quando você tem que viajar por éons, e éons, e éons, e…” e a velha senhora marcava cada éon com uma pontada de cócegas nas costelas do menino. Jor ria espontaneamente um riso limpo e tilintante, enquanto via a única lágrima nos olhos da avó secar, e um sorriso se insinuar no rosto cheio de rugas.

Mesmo uma lembrança tão feliz fez Jor engasgar-se, lembrando-o da felicidade que nunca mais teria. Sua Maru vibrou tão forte que fez seu coração pular uma batida. Um raio cai na árvore mais próxima da estrada de terra batida, iluminando o rosto cadavérico do jovem.

– Lá está o moleque assassino! – uma voz feminina e autoritária soou, não muito longe. – Cerquem-no, e fiquem com as redes isolantes a postos!

Ao mero som da palavra isolantes, o coração de Jor acelerou.

E então, parou.

*

– Humana, jogue a rede nele enquanto está caído – A líder do grupo que o perseguia ordenou, seca. – Vocês viram o que ele fez com a rede elétrica da cidade. Não queremos que isso se repita.

A tal humana estremeceu quando se lembrou do choque que percorrera seu corpo quando encontraram o último refúgio daquele povo, com apenas aquele jovem adolescente em pé, olhos negros, sem pupilas, tremendo como vara verde, mais assustador do que qualquer um que houvesse visto. Ela olhou feio para a líder, mas não desobedeceu a ordem.

A líder, Kiar, soltou a longa cabeleira negro-arroxeada com um suspiro de alívio, passando as mãos nas orelhas carcomidas para desamassá-las.

– Vamos embora. Esquerda, volver! – a mulher disse, secamente – Humana, leve-o. – ela se dirigiu à jovem, grosseiramente, enquanto comandava a milícia de Romul de volta para a capital. Há duas décadas no comando da mais famosa tropa de Lican (talvez perdendo apenas para a tropa de assalto de Remi, a cidade-irmã de Romul), ela não tolerava derrotas, muito menos para um adolescente que nem mesmo licano era, apenas um refugiado de um dos planetas destruídos pelos espectros.

A jovem subalterna abaixou-se para pegar a vítima, resignada. Havia aceitado o posto de oficial menor na milícia de Remi quando decidira que queria ser alguém que fizesse a diferença no mundo. Apesar de não ser licana, ela adaptou-se bem à tropa de assalto, chegando à liderança de um grupo, até que sua ambiciosa segunda em comando acusou-a de atrocidades que não havia cometido, causando sua expulsão da força e promoção da traidora. Apenas conseguira seguir treinando na milícia de Romul por insistência de sua antiga professora, uma licana de pelagem caramelo raspada e de alto poder político, com caninos tão afiados quanto sua língua. As outras líderes de pelotão ainda a oprimiam, com medo de serem ultrajadas por uma mera humana. Apesar dos contratempos, ela não desistiria e dava o melhor de si para continuar o sonho de proteger as pessoas – mesmo que isso levasse a tarefas com as quais ela não concordasse.

Ela lutava para andar alinhada e carregar a desajeitada trouxa que era o jovem embolado. Subitamente, um choque percorreu seu corpo. Sem pensar, jogou o embrulho longe e se atirou contra Kiar, levando-a ao chão.

– Cuidado!

*

Jor flutuava no vazio negro de sua mente.

Sinto muito, senhora.

Palavras ditas à meia-voz de um aposento escuro e de cheiro putrefato.

O coração dele deixou de responder há muito tempo.

O choro baixo e convulsionado da anina não deixava sua mente.

Foi melhor assim, ele se foi sem dor, antes que os espectros alcancem todos nós.

E então, um pulso em seu coração, e, de repente, Jor estava caído do lado de fora do lugar, com sua avó agarrando-o com força e uma enorme construção de pedra fria enegrecida, com estalos percorrendo um raio de quilômetros e quilômetros, e nenhuma alma viva ao seu alcance.

Como naquela fatídica noite em que deixaram o planeta em que Jor nascera, do qual mal se lembrava, ele sentiu sua Maru vibrar e seu coração, parar.

Tu-tum.

Tum. Tu-tum.

Tu-tum. Tu-tum.

“Essa não.”

O sangue de Jor ribombava em seu cérebro, e seu coração batia num compasso raivoso, e sua Maru parecia se derramar a sua volta. A escuridão em sua mente lampejou vermelha, cheia de ódio, dor, frustração, impotência, medo… E uma gotinha de saudade.

*

O corpo do menino flutuou no ar, queimando e estalando o chão e as plantas ao redor. Kiar, ainda protegida pela humana, sacudia sua cauda em um “oito” e gritava ordens para as outras.

Quando o menino levantou os olhos, a humana gelou – os globos oculares dos meninos estavam enegrecidos, com relâmpagos rubros percorrendo a superfície espelhada. Sua pele estava esticada e tensa, e suas veias pareciam querer saltar do corpo. Estalos eram ouvidos e pequenas chamas irrompiam e se apagavam com velocidade sobrenatural.

– Scari, pegue-o! – Kiar gritou, e a segunda em comando correu, espada em riste, seu lobo materializando-se à medida que avançava. A mulher, esguia e forte, de pelagem castanha-avermelhada mal chegou a três metros do menino quando pôs a mão no coração, apertou o braço esquerdo e caiu, sem dizer uma palavra, fazendo com que o lobo espectral sumisse antes mesmo de surgir por completo.

– Fique atrás de mim – a moça sussurrou para a superior, que lutava para desvencilhar-se, mantendo-a no chão. A humana sentia seu temor crescer à medida em que cada licana caía, com a mão no coração e o olhar vidrado. Kiar manteve-se escondida.

O adolescente, após derrubar todas, voltou seu olhar vazio para as mulheres no chão. Sua expressão carregava tamanho ódio e dor que elas tremeram.

Aquela era a face do demônio.

*

Jor sentia raiva do mundo, em uma proporção que nunca sentira antes. Cada fiapo de medo que sentia vindo em sua direção era rechaçado com uma batida de seu coração enfraquecido – apenas um instante, e ele sentia sua Maru vibrar na mesma frequência da Maru de suas atacantes, e bastava uma batida de seu coração frágil para que o coração das outras interrompesse o batimento com um pulso elétrico simples e cruel.

Ele via, por trás de um véu turvo escarlate, aquela que o tinha perseguido, sem dar um minuto de paz a ele e a sua anina, depois de dizimar sua família de refugiados. Lançou um olhar para a figura que estava caída na frente do alvo de sua fúria. Seu coração sentiu uma batida diferente, um pulsar calmo e ritmado, com tanta dor quanto ele, mas com um curioso autocontrole.

Vacilou por um momento.

*

– Agora!

Kiar gritou, empurrando a humana na direção do jovem, procurando ganhar tempo. Tirou da bainha decorada com um símbolo triangular branco um cano curvo e oco, e apontou ameaçadoramente na direção do menino.

A humana desviou do jovem, tentando desesperadamente manter a lucidez frente ao crescente pavor que sentia no coração. Quando se virou para Kiar, ela gelou. Uma arma de alta tecnologia reunia energia e zunia tão perigosamente quanto o menino, a estranha luminosidade da arma contrastando com a luz azulada do sol que despontava no horizonte.

– Não, Kiar…! – a humana gritou, sentindo em seu íntimo como era errado o uso de uma tecnologia tão avançada em um planeta de desenvolvimento precário.

Kiar atirou. E seu coração parou.

*

Jor sentiu que sua consciência começava a tomar forma, quando sentiu uma energia familiar percorrer seu ser.

“É a arma que acabou com meu planeta”

O pensamento veio e foi-se num momento entre as batidas de seu coração, mas foi o suficiente para que toda incerteza fosse varrida de sua mente. A escuridão voltou a tomar-lhe o livre-arbítrio, e ele pulsou inconscientemente sua Maru uma última vez, voltando toda a raiva e o medo que aquele ser lupino lhe dirigia contra ele mesmo.

E então, viu a mulher caída, com pavor nos olhos e dor no coração.

Seu coração segurou uma batida – e sua Maru fez o ar estalar com eletricidade estática.

*

A humana ajoelhou-se, vendo Kiar cair sem soltar um suspiro. Se era para ir embora daquele mundo, que fosse como sempre desejara viver – em paz.

Abaixou sua cabeleira rebelde, travou o maxilar e seu rosto ornou uma expressão séria, endurecida pelos anos. Olhou para o adolescente nos olhos e respirou fundo, sentindo seu coração diminuir o ritmo, e sua mente encher-se dos bons momentos que tivera com a família e amigos. Um cão negro surgiu nos limites de sua visão. “Nada mais justo do que ser ele aquele a me levar daqui. Me leve, velho amigo, e vamos juntos para a viagem sem fim”.

Seu coração pulou uma batida.

*

Jor voltou seu ódio para a humana que estava caída, a última com o coração ainda a bater. Pulsou sua Maru, fazendo com que seu próprio coração alterasse o ritmo. Quando estendeu sua Maru à oponente, sentiu algo que nunca sentira antes.

Sem saber como reagir, ele imitou a desconhecida, e sentiu a escuridão dentro de si oscilar. O que era aquilo?

A mulher ergueu os olhos e encontrou os dele.

Seu coração parou.

*

Ilha de Ev’ve, Ano 3 da Ordem dos Senhores de Castelo

Jor abriu os olhos. Um símbolo claro brilhava acima dele. Piscou os olhos algumas vezes, tentando limpar a visão. Um triângulo branco entrou em foco, e uma voz calma e imemorial podia ser ouvida bem ao longe.

– Calma, menino. Está tudo bem agora, ninguém lhe fará mal.

A dona da voz aproximou-se de Jor. A mulher era de uma velhice além de qualquer medida. Olhos solenes, uma expressão calma e um rosto que, apesar de não mostrar sinais físicos, denotava uma mulher que já havia visto os mais indizíveis sofrimentos e já havia superado os mais inacreditáveis percalços.

– Encontramos você e a pobre Avada caídos em meio a um turbilhão de Maru selvagem, com tantas vidas desperdiçadas… Foi uma agradável surpresa quando vocês recomeçaram a respirar de repente.

A mulher sorria para ele, e ele sentia sua Maru vibrar em um pulsar jamais sentido antes – sentia-se tranquilo e… feliz?

– Menino? – era a humana. Jor lembrava-se vagamente dela. Avada, esse era o nome que a mulher idosa usara para se referir a ela. – Sábia. – ela fez uma reverência para a mulher que conversava com Jor.

Jor prestou atenção na mulher, e levou um susto. Seu rosto, seu jeito, sua voz… Era sua avó!

– Anina – ele disse, com a voz entrecortada e ressecada pelo tempo em desuso.

– Sinto muito, garoto – a mulher respondeu, com olhar triste, sem rodeios.

– Ela não é quem você pensa que é – Avada disse suavemente. Ela mesma via, com um aperto do peito, sua mentora de infância quando olhava para a mulher, e demorara a compreender que a sábia era uma pessoa completamente diferente para cada um que a via. O cão negro ainda estava em seu campo de visão, e ela sentia que nunca se veria livre daquele fantasma do seu passado.

Jor deixou seus ombros caírem, e sentiu seus olhos arderem na medida em que se lembrava do que acontecera. Matara mais pessoas do que ajudara, só porque se deixara levar pela dor da solidão. Sentiu a frustração e a impotência tomar conta de si, e sua mente começou a se enevoar novamente.

– Shh… Calma, pequeno – Avada disse, baixinho.

Jor sentiu o coração dela como havia sentido mais cedo, e a escuridão se foi.

– Jovenzinho. – a mulher mais velha tornou, séria. – Se você não puder manter a paz dentro de si, sua Maru irá se desestabilizar, e não poderá mais manter seu coração batendo. A única razão para que você – e colocou a mão nodosa no peito do jovem – continue pulsando, e que tem poder o suficiente para dispará-lo cada vez que falha. Se perder a calma novamente, você irá consumir não somente a vida dos outros, mas a sua também.

Avada segurou a mão de Jor. O jovem mal conhecia aquela garota, mas sentia uma paz perto dela que ele nunca sentira antes. Ele endureceu o rosto, e pareceu muito mais velho ao dizer:

– Nunca mais irei causar tamanha dor nos outros, Sábia. Aqui faço o juramento de que vou lutar pela justiça e levar o bem a todos. Todo ser tem direito à vida, e eu garantirei isso. – Avada anuiu fervorosamente – Iqueróm wa puma.

– Como disse? – a mulher perguntou, curiosa. Um tremor percorreu o chão, e a brisa forte e fria uivou à distância.

– Eu disse, senhora, algo que minha anina me ensinou, nos confins do Multiverso. Agir para manter a paz. E, se para isso terei que manter a paz dentro de mim antes, assim será.

A mulher olhou-o com uma expressão curiosa, e voltou seu olhar para o alto.

– Nos confins do Multiverso… – a mulher disse, com o pensamento em outro lugar – O que acha disso, minha metade? – a voz da mulher derramava carinho.

O chão pareceu reverberar a pergunta da mulher, e uma luz de compreensão emanou dos olhos dela. A vida parecia permear todo aquele lugar, e reagia a cada ação e a cada pensamento deles, usando a sábia como meio de comunicação.

– Senhora, onde… Onde estamos? – Jor perguntou, com o máximo de respeito que conseguiu reunir de suas memórias com anina.

– Estamos sobre o ser primordial, o ancestral de toda a vida senciente, pequenos. Ev’ve é como se chama, e eu sou Nopporn para vocês, jovens. Estou curiosa a respeito de você, menino, assim como Ev’ve. Você não tem razões para estar vivo, e, ainda assim, aqui está. Quem é você? – ela questionou com franqueza.

O jovem pensou um pouco, e sentiu uma nova paz dentro de si. Apertou a mão de Avada. Sentiu esperança, pela primeira vez em sua breve vida.

– Eu sou Monjor, sábia Nopporn. Monjor V.

 

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