Conto 02: Underflow (A.Z.Cordenonsi, Revista Fantástica)

Tianrr
A sala era imaculadamente branca e permanecia silenciosa. O único barulho presente era o dos exaustores que recolhiam o ar quinze andares acima, escondidos por entre as paredes do pequeno e pitoresco restaurante Telha D’Ouro. Construído sorrateiramente por trabalhadores estrangeiros fornecidos pelos contrabandistas Gerens, poucos no Planeta Tianrr sabiam da existência do prédio subterrâneo.
No centro da sala, uma tela de dois metros de largura dominava totalmente o ambiente. No lado oposto havia uma única porta de acesso, que acabara de deslizar com um sussurro fraco, deixando entrar o Operador. Com passos despreocupados, ele se aproximou da tela com um teclado que trazia a tiracolo. A tela imediatamente ganhou vida, piscando uma luz esbranquiçada por alguns momentos até que uma mensagem avermelhada surgiu no centro. O Operador digitou alguma coisa no teclado e um modelo perfeito de um planeta preencheu toda a tela, pontilhado por pontos azuis e vermelhos. Ele continuou teclando por mais alguns momentos até que um terminal de fundo negro apareceu no canto superior direito. O Operador estava pronto para iniciar.

Binal
Leto saltou da sua embarcação para uma doca de pedra sólida, sentindo seu estômago protestar por estar em terra firme. Apesar de ter sido promovido a um Senhor de Castelo há quase três anos pelo Conselho de Ev’ve, sua alma ainda era de um marinheiro e ele se sentia melhor nos mares do que nas Terras do Multiverso. Mas ele estava em missão oficial e não podia se dar ao luxo de permanecer mais tempo em sua magnífica nave. Ele passou carinhosamente a mão pelo casco translúcido do Lâmina Esguia, sentindo os respingos da água salgada e o ritmar suave do casco que balançava ao sabor das ondas.
O Senhor de Castelo avançou pelas docas desnudas até encontrar o embaixador Zero-Um. – Rhu’ia, Zero-Um.
– Seja bem vindo ao nosso lar.
O Senhor de Castelo abriu um sorriso largo. O embaixador usava o módulo de tradução que lhe permitia falar a língua comum. Leto conhecia muito pouco da complexa língua do Planeta Binal e ele sabia que a utilização do módulo era uma deferência feita a ele e, deste modo, ele respondeu a delicadeza com um aceno de agradecimento.
Enquanto andavam pelas docas, Leto lançou um primeiro olhar à opulenta e insípida Distram, umas das maiores e mais importantes cidades do Planeta Binal. Ele sentiu a pedra dura sobre seus pés e lançou um olhar incrédulo para os prédios altos com suas placas de prata, as construções quadradas e as linhas retas e duras. Por todos os lados, robôs, autômatos e androides vagavam de um lugar para o outro, cientes e comprometidos com as suas obrigações diárias.
Zero-Um o acompanhou para fora das docas, fazendo uma ou outra observação enquanto os dois andavam pelas ruas pavimentadas e quentes. Ao dobrar uma esquina, ambos foram parados por um enorme robô. Ele era um metro mais alto que Leto e tinha duas pernas metálicas. Na altura do peito, o robô era constituído por apenas um construto, onde eram afixadas uma grade de sensores e uma tela de comunicação. De lados opostos do construto pendiam dois braços que se movimentavam livremente, cada um armado com quatro disparadores de grande calibre. Uma antena no alto da caixa torácica o ligava com a rede primária de comunicação, emitindo bipes esporadicamente. Entre as duas pernas havia uma plaqueta de identificação: ED-209.
O robô lançou um raio avermelhado que escaneou a face do autômato. Na sua tela de comunicação, surgiram três dígitos:
000
De forma automática, o robô escaneou Leto, que sentiu um formigamento estranho na face. Ele permaneceu impassível, apesar do desconforto. Os dígitos reapareceram:
001
Leto só sentiu que estava suando quando o robô seguiu seu caminho e ele voltou a respirar.
– O que ele queria, afinal? – perguntou, a língua dançando nervosamente por entre os lábios secos.
– Era um robô guardião. Ele estava medindo nossos níveis de ameaça.
– E o meu nível de ameaça era 001?!
– Sim, numa escala de zero a oito, todas as principais formas de carbono são classificadas como nível 001. Apenas autômatos tem o nível nulo de ameaça.
O Senhor de Castelo abriu um sorriso amarelo.
– Venha, Leto, você precisa conhecer nossa bela cidade.

Tianrr
O Operador tentava acesso à rede primária de comunicação há quase vinte minutos, sem sucesso. Em outras ocasiões, ele nunca tivera tamanha dificuldade, pensou. Ele franziu o cenho, mas não havia linhas de expressão que pudessem acompanhar o seu gesto. As suas mãos teclavam sem parar, distribuindo comandos que eram enviados à tela.
Do outro lado de um espelho de observação, uma respiração nervosa e pouco ritmada acompanhava os movimentos do Operador. Com o peito chiando e ofegante, o homem que vestia trajes azuis não ouviu os passos lentos e o murmurar de um manto que roçava levemente o chão. Ele saltou, assustado, quando uma mão ossuda tocou no seu ombro.
– Ah, é o senhor – disse o primeiro observador.
O recém-chegado não respondeu, dando um último passo até o espelho e cravando os olhos frios nas costas do Operador no exato momento em que a tela exibia uma mensagem verde.
Elo estabelecido

Binal
Leto e Zero-Um avançaram para o centro de Distram. Em uma esquina, um autômato revestido de um metal alaranjado parou o embaixador com um sinal. Os dois autômatos passaram a travar um diálogo estranho, cheio de cliques metálicos e uníssonos que arranhavam os ouvidos de Leto. Enquanto esperava os dois, o marinheiro esticou as costas e se afastou um pouco. Logo após, algo muito estranho aconteceu.
Dois robôs guardiões se aproximavam, mas seus movimentos eram dispersivos, quase caóticos. Eles andavam em órbitas circulares, aproximando-se um do outro até quase se tocarem; depois se afastavam e voltavam a se aproximar, mantendo-se dentro de um conjunto mais ou menos coeso. Seus volteios lembravam vagamente o movimento dos pássaros em um bando. Estranhamente, aquele pensamento produziu um arrepio involuntário no Senhor de Castelo.

Tianrr
O Operador observava os pontos azuis na tela se movimentando em grupos exatamente como ele tinha programado. Era lindo observar os movimentos complexos que se originavam de regras tão simples. Com um leve toque de impaciência, ele esperou que todos os robôs formassem seus nichos. Logo, bandos agrupados de robôs se aproximavam de forma contínua dos autômatos, em número bem menor, representados por pontos vermelhos. Estava na hora de iniciar a fase dois.

Binal
Os dois robôs guardiões se aproximaram ainda mais dos autômatos em seu passo desengonçado e errático. Zero-Um e seu colega estavam completamente sem ação, incapazes de entender o que estava se passando. Leto mandou o protocolo às favas e, mesmo correndo o risco de parecer indelicado ou mesmo um completo idiota, puxou o cabo da sua espada. Uma lâmina curva e translucida de energia escapou pelo punho, vibrando levemente, trazendo uma leve sensação de conforto ao Senhor de Castelo.
Assim que o primeiro robô guardião se aproximou, um raio avermelhado fluiu do seu peito metálico para as faces dos autômatos. Eles perfilaram-se para serem escaneados. Da pequena tela de comunicação, alertas estranhos piscaram.
000
000 – 1
000 + complemento(001)
000 + 111
111
Um bipe agudo escapou do robô guardião, quase furando os tímpanos de Leto. O Senhor de Castelo saltou à frente, mas os robôs o ignoraram. Em menos de um segundo, disparos mortais dos canos armados dos guardiões irromperam em um estampido, arrancando pedaços, peças e a vida dos dois autômatos.
Leto ergueu a espada, olhando incrédulo para os dois autômatos despedaçados, subitamente consciente de que eles se voltariam contra ele agora. O primeiro robô se virou para o marinheiro, a fatídica linha avermelhada esquadrinhando seu rosto. Leto tentou correr, mas ele sabia que não havia tempo. Com um engolir em seco, ele se preparou para o pior.
001
001 – 1
001 + complemento(001)
001 + 111
000
Os dois robôs baixaram as armas e voltaram a seguir seu caminho errático, andando em órbitas e floreios, vagando pela rua.
Foi necessário alguns momentos para que Leto conseguisse processar o que tinha acontecido. Ele estava vivo. Não sabia como, mas estava vivo. Seja qual fosse o problema que ocorria nos programas dos robôs guardiões, ele tinha escapado. Uma explosão a meio quarteirão dali o retirou dos seus devaneios e Leto finalmente percebeu que aquele não era um incidente isolado. Por toda a parte, robôs guardiões atacavam e destruíam autômatos, fazendo exatamente o que tinham sido programados para fazer: eliminar qualquer ameaça.

Tianrr
O Operador abriu um largo sorriso. Os pontos vermelhos desapareciam da tela em grande quantidade. Ele aguardou por vários minutos, os dedos tensos sobre o teclado. Pouco a pouco, o número de explosões diminuiu. Os pontos vermelhos restantes se agruparam e, agora, eram os pontos azuis que recuavam passo a passo, a quantidade de combatentes retrocedendo em números alarmantes. O Operador não se perturbou, afinal, este comportamento já era esperado.
Cantarolando baixinho, ele começou a distribuir uma série de comandos. Os pontos azuis pararam seu comportamento errático e passaram a se agrupar em batalhões maiores. Logo, os robôs estavam entrincheirados entre as paredes destruídas, respondendo ao fogo do inimigo. A batalha ganhava novos termos.

Binal
Leto pulou no exato momento em que uma bomba fragmentadora explodiu o robô de tração caído que o Senhor de Castelo usava como abrigo. Ele rolou pelo pavimento esburacado e correu pela via, fugindo entre os disparos dos combatentes.
A batalha ganhara uma ferocidade que Leto nunca imaginaria encontrar naquela sociedade mecanizada. A forma como o ataque foi engendrado era diabolicamente eficiente; o marinheiro perdeu a conta de quantos autômatos ele viu tombar sem ao menos terem a chance de se defender. Ele tentou enfrentar um dos robôs guardiões com sua espada iônica, mas ela nem ao menos arranhou a couraça protetora dos mecanismos. Bufando de raiva e frustração, o Senhor de Castelo se viu obrigado a fugir para sobreviver.
Enquanto corria, o marinheiro se viu prestando atenção em um pequeno zumbido. Enxugando a testa suada com o resto do casaco puído, ele esticou o pescoço por um muro até perceber uma estranha fila de minúsculos robôs andando pelos destroços. Havia centenas deles, dos mais variados tipos e formatos. Eles pareciam completamente alheios a destruição que ocorria ao seu lado, seguindo um caminho bem definido, ignorando outros robôs, autômatos e, claro, o próprio marinheiro.
O Senhor de Castelo franziu o cenho, intrigado. Quem estaria comandando aqueles robôs e com qual objetivo?

Tianrr
O Operador tomou um grande gole de um suco gelado que haviam lhe trazido, sentindo o gosto açucarado descer pela garganta com satisfação. O seu plano estava dando certo. Ele bocejou lentamente enquanto observava os pontos vermelhos realizar diversas manobras para tentar cercar os seus robôs azuis. Aquilo já era esperado e, na verdade, o Operador contava com isso.
Limpando a boca com a palma da mão, ele digitou uma série nova de comandos. Pontos verdes surgiram na tela, aos milhares. O Operador enviou mais alguns comandos e o planeta simulado foi dividido em quarenta e duas regiões. Em cada região, uma Torre Negra surgiu, piscando em um ritmo forte e ritmado. Logo, os minúsculos robôs esverdados da tela começaram seu lento caminhar, atraídos pela Torre Negra. Esta era a fase três.

Binal
Leto correu entre os destroços, ziguezagueando para fugir de bombas e disparos. Ele seguia a trilha dos minúsculos robôs aos tropeções, o suor encharcando suas costas.
Duas quadras depois, a fila de robôs desapareceu entre os escombros de uma parede demolida. Blasfemando contra todos os deuses que conhecia, o marinheiro se forçou a dar a volta. Perto de uma esquina, Leto escalou um prédio que havia tombado sobre a via. Quando alcançou o cume dos destroços, o marinheiro conseguiu vislumbrar uma grande praça circular. No centro, uma estrutura funicular desaparecia nas entranhas da terra.
O Senhor de Castelo ficou um tempo observando aquele lugar. De repente ele notou uma coisa. O chão da praça parecia se movimentar. Leto esfregou os olhos, tentando tirar a fuligem e o pó das pálpebras. Não havia dúvida, o chão da praça estava realmente se movimentando. Com uma ideia absurda se formando em sua mente, o marinheiro desceu com cuidado pelos destroços, um olho na praça e outro nos escombros perigosos. Ao atingir o chão, o marinheiro precisou respirar fundo, o espanto cravado nas suas faces rígidas e incrédulas.
Cautelosamente, ele colocou um pé na praça. Os milhares de robôs que andavam de um lado para o outro afastaram-se rapidamente das botas do Senhor de Castelo e voltaram seu caminho como se nada tivesse acontecido. Aquilo parecia um formigueiro, um imenso formigueiro de formas robóticas dos mais diversos tipos que se aglomeravam, umas sobre as outras, em uma confusão de pés metálicos, rodas e antenas, todos tentando alcançar o centro da praça, desaparecendo às centenas dentro do funil.
O Senhor de Castelo analisou suas opções e decidiu que não adiantaria nada ele continuar se aventurando por ali. Seja o que fosse que aqueles robôs estivessem fazendo, era mais do que claro que ele não poderia fazer nada sozinho contra uma muralha de robôs. Quando ele já estava se virando para retomar o seu caminho até as docas, ele viu algo. Um cintilar dourado brilhou no meio dos minúsculos robôs. Era um autômato que se arrastava para fora do funil, um som estridente escapando do seu módulo vocal.
Mesmo sem entender uma única palavra, Leto sabia muito bem o que era um pedido de socorro.

Tianrr
O Operador esticou as costas e estalou os dedos. Agora estava chegando a hora crítica, onde ele havia falhado em várias vezes anteriores. Com um canto dos olhos, ele observava um gráfico onde cada curva representava uma das Torres Negras. A maioria das linhas estava chegando rapidamente aos níveis mínimos estabelecidos, mas havia problemas em algumas Torres. Era necessário uma quantidade maior de material e este equacionamento sempre fora de difícil solução.
Mordendo os lábios, o Operador resolveu testar uma ideia que havia tido depois do seu último fracasso. Teclando furiosamente em seu teclado, ele enviou metade dos pontos azuis atacarem os pontos avermelhados. Enquanto o combate se desenvolvia de forma feroz junto aos locais de aquartelamento dos autômatos, os demais pontos azuis fugiam rapidamente, seguindo uma trilha preestabelecida Alguns foram abatidos enquanto fugiam, mas uma boa parte conseguiu escapar, exatamente como o Operador havia imaginado.

Binal
Leto correu por entre os robôs, esmagando uma boa quantidade deles. Em poucos minutos ele alcançou o autômato dourado. De seus olhos avermelhados brilhava uma luz intensa e o som do seu comunicador era irritantemente agudo, mas o marinheiro nada compreendia. O humanoide estava com parte do dorso aberto, os circuitos a mostra. Suas pernas metálicas tremiam ligeiramente.
– Caramba, que estrago – murmurou o Senhor de Castelo. Ele não tinha a menor ideia de como consertar um autômato. Ele havia ouvido falar que eles podiam se reparar sozinhos, mas ele não tinha certeza se acreditava ou não nesta história.
– Nós não podemos ficar aqui, você entende isso?
O autômato continuou emitindo seus silvos. Leto deu de ombros.
– Venha, vamos dar o fora daqui – disse, puxando o autômato pelas omoplatas e arreganhando os dentes pelo esforço. Uma das pernas estava inutilizada, mas a outra ainda funcionava razoavelmente bem. Lentamente, Leto arrastou o seu novo companheiro para longe do enxame dos robôs.

Tianrr
O Operador suava agora. Os gráficos estavam quase todos verdes. Mordendo os lábios, ele digitou mais comandos, ignorando todos os planos meticulosos. Agora era simplesmente uma questão de tempo. Ele enviou todas as suas tropas de encontro às torres. Ele precisava aumentar a massa crítica agora ou tudo estaria perdido.
Dentro da central de observação, o homem de trajes azuis acessava as informações por uma tela exclusiva. Com um leve girar em um botão deslizante, ele aproximou o simulador da torre negra quatorze, no setor A-3. O homem sorriu. A representação esquemática da torre era apenas uma simulação, na verdade o que atraía os robôs eram os algoritmos de caminhamento que o Operador introduzira na rede primária de comunicação. Embaixo das torres imaginárias ficavam os acessos às principais centrais de energia térmica do Planeta Binal que extraiam o calor do magma subterrâneo. E era exatamente estes túneis que estavam sendo sobrecarregados com o corpo de milhares de robôs suicidas.
O homem lançou um olhar para o seu superior que, pela primeira vez desde que o conhecera, abrigava um sorriso frio em seus lábios finos.

Binal
Leto empurrou e puxou o autômato quase até o limite de suas forças. Com os músculos rasgando a cada novo esforço, o marinheiro conseguiu derrubar o autômato inconsciente dentro do compartimento de carga do Lâmina Esguia. Saltando das docas, o Senhor de Castelo amarrou o corpo humanoide do seu companheiro ao barco, jogando nas águas turvas todo o estoque de suprimentos que possuía. Ele pulou para o timão da embarcação e ligou o rotor. Com um suspiro cansado, ele girou a embarcação para longe das docas e aumentou a potência do motor.

Tianrr
Os gráficos piscavam na tela. Todos os níveis estavam satisfatórios. O Operador deu um soco no ar, vibrando, antes de se voltar ao teclado. Mais alguns poucos segundos e a primeira detonação ocorreu, abrindo um rasgo no globo simulado. Logo, outras detonações se seguiram, em pontos cuidadosamente calculados para maximizar o efeitos das explosões. Em pouco tempo, ondas gigantescas de fogo varriam o planeta.

Binal
Leto sentiu o primeiro baque quando o nível do mar subitamente começou a diminuir, como se estivesse sob o efeito de uma maré gigantesca. Ele ouviu as explosões ao longe, mas não teve coragem de olhar para trás. Agora, a sua vida e a do autômato desconhecido estavam apenas na dependência de suas habilidades.
O vagalhão atingiu o Lâmina Esguia com a força de mil tempestades. Leto mal teve tempo de puxar o sistema de travamento antes do barco ser sugado para o meio das ondas gigantescas. Enquanto rodopiava debaixo de milhares de toneladas de água, o marinheiro não desgrudava os olhos da tela binaliana que ele instalara na embarcação. De repente, um ponto avermelhado piscou na tela. Eles se aproximavam do portal, mas o ângulo estava muito aberto. A embarcação passaria muito longe do ponto de entrada.
Trincando os dentes, ele voltou a ligar o motor, forçando o timão em um ângulo agudo, usando a própria força do maremoto a seu favor.
Terríveis instantes se passaram. Eles se aproximavam cada vez mais do portal e o ângulo de ataque diminuía lentamente.
– Vamos – gritou Leto, irritado – Vamos, sua maldita lata velha!
Com um estrondo, o barco subitamente foi espirrado para fora d’água. O Lâmina Esguia saltou pela água como um peixe-voador e bateu violentamente o casco contra a água diversas vezes até que parou. Ainda tremendo, Leto abriu novamente a proteção do casco, deixando entrar uma brisa fria que congelou seus ossos doloridos. Haviam atravessado. Estavam nos Mares Boreais.

Tianrr
As explosões se sucediam no modelo da grande tela. O Operador observava tudo com um sorriso sincero. A última detonação ocorreu exatamente na hora prevista. Ele bateu palmas, excitado, fitando com atenção os contadores, que calculavam sem parar até que uma mensagem apareceu:
exército vermelho: 0
exército azul: 0
O Operador ergueu os dois braços para o ar, em sinal de triunfo. Neste momento, a porta deslizou mais uma vez e uma bonita moça de cabelos avermelhados e uniforme tão alvo quanto a tela entrou no aposento. Ela se aproximou do Operador com os passos leves.
– Eu ganhei! Ganhei, Lyra!
– Muito bem, meu amor.
– Será que podemos jogar outra coisa agora? Tô cansado deste jogo – protestou o Operador, com uma expressão sofrida.
Lyra passou a mão levemente na cabeça de um menino que não deveria ter mais do que onze anos.
– É claro, meu querido. Tenho a impressão de que o Diretor não vai mais precisar que você jogue este jogo de novo.
Do outro lado da sala de observação, o homem de trajes azuis respirava pesadamente.
– Está feito, senhor.
O homem de rubro encarou seu auxiliar.
– Vejo dúvidas em sua mente, meu caro.
O primeiro observador pigarreou.
– A destruição de toda uma civilização… – disse ele com a voz perturbada – Parece um tanto… drástico.
O homem de rubro sorriu.
– Para a nova ordem que queremos instalar, a existência de seres naturalmente imunes a magia seria uma temeridade, meu caro.
– Não, meu amigo, foi melhor assim – continuou ele, os olhos frios – Precisávamos estar livres de todos os autômatos.

Mares Boreais
No Lâmina Esguia, um leve tremor do corpo metálico se seguiu ao piscar das pedras avermelhadas que jaziam cravadas no rosto oval do autômato. A luz dos olhos se acendeu e Azio acordou.

-X-

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