Conto 03: Jornada (Keitty de Oliveira Silva; O Jovem Escritor)

A noite se aproximava e as estrelas já apareciam no céu enquanto, desvencilhando-se das árvores, uma jovem coberta por uma túnica preta caminhava rapidamente. Depois de alguns minutos, parou de repente e escutou os sons da Floresta de Fluyr. Não havia Fains nas redondezas, pois concentravam-se mais no centro da floresta, uma brisa leve balançava as folhas e, ao longe, escutava-se as águas do rio Betasys correrem calmas.
“Ótimo”, pensou a garota. “Esta noite será tranquila”.
Nada a surpreenderia, pois possuía o Coração de Thandur, a gema que aguçava os sentidos, dentro do seu peito. Todos afirmavam que existia somente uma gema dessas, sendo o possuidor um tal Senhor de Castelo chamado Thagir. Contudo, o que ninguém sabia, era a existência de uma segunda pedra.
Caminhou até um carvalho próximo e despiu a túnica, revelando uma bonita moça de 22 anos, de pele morena queimada de sol, cabelos longos e ondulados de um tom preto-azulado, olhos cinzentos profundos.
Era magra e possuía um belo corpo coberto por um conjunto de calça e camiseta feitos de um tecido leve e botas de couro que subiam até abaixo de seus joelhos. No pescoço ostentava um relicário prateado vazio.
Seu nome era Kiva Hilk e provinha do planeta Teslar, no quadrante 2.
Dentre as tantas tribos nômades que viviam no grande Deserto de Gálam Makur, pertencia á segundo maior tribo do planeta, os Rockar va Karin.
Amontoou algumas folhas secas entre as raízes da árvore, deitou-se e logo adormeceu. Seu sono foi inquieto e sonhou o mesmo sonho que a perseguia noite após noite, já fazia dois anos.

***

Kiva caminhava por entre as dunas de areia colorida de Teslar. Era cedo, e o sol não estava tão escaldante como costuma ser. Vestia uma longa túnica e um véu que protegia sua cabeça dos raios solares.
Uma trança de barbante preto rodeava sua cintura, símbolo dos Rockar. Uma bolsa de couro trespassava-lhe o peito, contendo algumas tâmaras, pão, um odre de água e um punhal de lâmina curva.
Caminhava com passadas largas quando viu um reflexo metálico em uma duna arroxeada. Correu e ali encontrou um veículo de duas rodas, cheio de tubos interligados cobertos por símbolos estranhos. Era todo feito de um metal fino mas resistente e, no meio do emaranhado de tubos, uma pedra chamou sua atenção.
– Não pode ser – disse Kiva para si mesma. – É um Coração de Thandur! Encontrei o que meu povo procurava á séculos, e tão próximo de nossa aldeia.
Agachou-se e, com esforço, arrancou a pedra, caindo sentada na areia. Ficou extasiada olhando para a gema. Nela visualizou toda a trajetória que o veículo fizera no Multiverso. E se assustou com o que viu.
Levatou-se e começou a correr no sentido oposto àquele que levava à Rockar va Karin.

***

Acordou sobressaltada, com a palavra “traidora” ressoando em seus ouvidos.
– Perdoem-me – sussurrou Kiva.
Olhou para o céu. Ainda era cedo e o sol levantava-se preguiçosamente no horizonte. Pegou suas coisas rapidamente e
dirigiu-se até o Rio Betasys para lavar-se e pescar algo para o desjejum.
Seguiu o curso do rio durante oito dias, até chegar ao Pântano Muko.
Chegando ao pântano, lembrou que ali existiam animais mutantes e caçadores de homens. Contudo, não se importava com esses perigos.
“Falta pouco”, pensou a teslarniana. “Talvez, se me manter próxima á cordilheira, eu evite perigos desnecessários”. O terreno era úmido e escorregadio, as árvores eram escuras, pareciam velhas com seus troncos rugosos e eternamente doentes. Sapos coaxavam e criaturas escondidas rastejavam por entre as folhas mortas.
A jovem dormia na base das montanhas e se alimentava com plantas e ervas que reconhecia. No quarto dia de caminhada, encontrou uma carcaça de uma criatura que não conseguiu identificar. Repentinamente, a jovem segurou o punhal e virou-se na direção do pântano.
– Apareça!
– Vejo que percebeu minha presença – disse uma voz rouca escondida nas sombras. – Como conseguiu essa proeza?
– Não interessa como fiz isso, já disse para aparecer!
Rindo com escárnio, das sombras surgiu uma criatura alta, com o corpo coberto por escamas azuladas, as patas inferiores confundiam-se com os braços fortes com músculos sobressalentes; os dedos das mãos possuíam garras afiadas e, no rosto anfíbio, um olhar amarelo e malicioso contrastava com um sorriso largo composto de dentes verdes pontiagudos.
– O que você é? – perguntou Kiva.
– Sou um lagarto mutante. Culpa do ar contaminado daqui.
– Foi você que matou este animal? – perguntou, dando um passo para trás.
– Eu estava com fome, e, além disso, a carne era muito saborosa e macia.
O reptiliano aproximava-se lentamente.
– Fique longe ou vai sentir a lâmina do meu punhal na sua garganta!
Com uma risada gutural, o lagarto chegava cada vez mais perto.
– Adoro desafios, ainda mais quando são bonitos como você. Quando capturo a presa, arranco-lhe os olhos para que não fuja. Depois, corto o pescoço. Mas com você farei diferente. Não tirarei seus lindos olhos. Não sentirá dor alguma, não se preocupe. Gostei muito de você. Acho que preservarei seu corpo e, quando começar a apodrecer, pedirei a Feiticeira Marna que mantenha sua alma junto da minha. Maravilhosa essa minha idéia, não é mesmo?
Um leve sorriso brotou nos lábios da jovem.
“Como esse mundo é pequeno”, pensou.
– Qual é a graça? – perguntou o lagarto, ficando sério.
– É muito confiante – respondeu Kiva. – Darei a você uma última chance. Vá embora e eu te deixarei viver. Se decidir ficar, não terei clemência. Tem três segundos para desaparecer da minha frente.
Um…
O lagarto voltou a mostrar os dentes esverdeados.
Dois…
A criatura chegou mais perto.
Três…
Kiva sentiu o tempo desacelerar. Correu ao encontro da criatura e desviou-se de uma rasteira do lagarto. Pulou a perna escamosa e deu uma cotovelada nas costas de seu inimigo, que acabou ficando estirado no chão. Porém ele era rápido, e logo se levantou. Arfando, o lagarto correu em direção a teslarniana.
Esta, por sua vez, saltou, dando uma pirueta no ar, parando logo atrás do reptiliano que ainda olhava para onde, segundos antes, ela estava. Com uma única estocada, perfurou o pescoço do lagarto, acabando de uma vez por todas com aquele combate.
– Eu avisei.
Limpando o sangue verde da adaga no musgo de uma árvore, Kiva deu as costas ao moribundo e partiu em direção à Kallidak.

Os dias passavam rápidos, e logo o Pântano Muko foi deixado para trás. Finalmente chegara a Kallidak, a cidade da escória, onde contrabandistas, sequestradores, matadores de aluguel, ciclopes gigantes e feiticeiras malditas viviam.
Antes de adentrar os portões do lugar, a jovem fechou os olhos e lembrou de seu planeta.
O deserto, uma desolação infinita, na qual a pouca vida existente se equilibrava fragilmente, onde o vento era a única voz. Não era um lugar morto, como os outros planetas o classificavam, era rico em nuances, de uma beleza singular e extraordinária.
“Será que um dia poderei voltar? Ou será que é somente mais um devaneio?” Suspirou Kiva, com uma única lágrima descendo pelo lado esquerdo do rosto. “Tenho uma meta a cumprir. Não vou desistir”.
Cobriu-se com a túnica preta, já bem gasta e desbotada e entrou em Kallidak. As ruas eram feitas de pedras irregulares, com lixos de todo tipo espalhados nas calçadas. As casas eram de madeira escura, maltratadas pelas intempéries do clima e não ultrapassavam dois andares. As pessoas eram mal encaradas e carrancudas, vindas de várias partes do Multiverso. Mais adiante, a teslarniana avistou seu objetivo: a Fortaleza dos Ossos.
O lugar era um amontoado de torres em ruínas, cercadas por um muro alto, coberto de hera. A única entrada era um enorme portão de ferro, protegido por quatro guardas brutamontes. Não havia jardim, e, as poucas janelas que existiam eram minúsculas. Chamava-se Fortaleza dos Ossos porque, segundo a lenda, ali morava um conde sádico,
adorador das torturas mais cruéis e repugnantes. Quando matava alguém, retirava seus ossos e os incorporava na estrutura dos muros e da casa. Os mais supersticiosos alegavam que, em determinadas noites, ouviam-se os gritos de dor dos infelizes mortos. Ali morava a feiticeira Marna.
Encoberta pelas sombras de um beco, esperou as estrelas surgirem. Quando a quantidade de pessoas nas ruas diminuiu, resolveu agir. Silenciosamente, escalou o muro segurando-se nas heras. Na porta de entrada da Fortaleza, havia dois guardas conversando. Sorrateiramente, aproximou-se dos dois. Pegou uma pedra e a atirou com força contra algumas ruínas, provocando um estrondo e alertando os guardas.
– O que foi isso? – perguntou o primeiro sentinela, segurando uma lança.
– Não sei Klauss, mas é melhor irmos ver. – respondeu o outro, caminhando com a mão no punho da espada, deixando a entrada desprotegida.
Com passos leves, correu para dentro da fortaleza. O interior do recinto era totalmente diferente do lado exterior. Nas minúsculas janelas havia cortinas negras de seda; tapetes de pele forravam, quase que completamente, o chão; as escadas eram de mármore e os corrimões dourados; uma mesa de mogno inteiramente trabalhada chamava a atenção no centro do salão. Tudo completamente limpo e silencioso, sem guardas à vista. Kiva olhou rapidamente, procurando o
que viera surrupiar.
Durante algumas horas, revistou todas as torres, sem encontrar obstáculos e, o que era mais decepcionante, sem encontrar o que procurava. A noite já embalava o sono de muitos quando a jovem decidiu voltar por onde havia começado. Percebeu uma pequena porta sob a escada do salão de entrada e, destrancando-a com um equipamento
especial, descobriu uma escada em espiral, iluminada pela luz bruxuleante de tochas acesas. Descendo, deparou-se com uma enorme biblioteca, com as prateleiras talhadas diretamente na rocha e estantes de madeira enfeitadas com teias de aranha.
Caminhando por entre as estantes, reparou em livros de todos os temas, desde botânica até histórias fantásticas. Pelo canto dos olhos, foi atraída por uma luz avermelhada e, aproximando-se, viu um pedestal que segurava aquilo que procurava: a Jóia de Landrakar, roubada do castelo de Newho, no planeta Curanaã.
Sentiu um leve desconforto no peito, que logo foi ignorado. De um dos bolsos da calça, retirou uma pedra de quartzo violeta e, repentinamente, o tempo se tornou lento. Com uma velocidade impressionante para olhos comuns, retirou a jóia do pedestal e a substituiu pelo quartzo. Segurava na mão esquerda uma pedra esmeralda, de formato octagonal. De dentro das vestes, pegou o relicário prateado vazio, abriu-o e anexou a jóia, fechando-o novamente e o escondendo por dentro da blusa.
– Sabia que somente os Senhores de Castelo podem possuir a Jóia de Landrakar? – perguntou uma voz feminina e aveludada, sobressaltando a teslarniana.
– Mais um motivo para ela não permanecer aqui, não é mesmo Marna, ou devo dizer, Ninarah? – respondeu Kiva, virando-se para encarar a feiticeira, uma mulher alta, atlética, com cabelos cor-de-fogo e olhos negros.
– Vejo que não me esqueceu.
– E como poderia? Fui sua amiga, mesmo sendo de uma tribo inimiga em Teslar. Quando todos olhavam de esguelha e desconfiavam de você, eu a acolhi no meu lar. E como foi que me agradeceu? – falou Kiva, sarcasticamente, dando um tapinha na testa. – Ah! É mesmo! Matando meu irmão!
– Ele era realmente bonito, lembra? – Marna sorriu. – Gostava tanto de mim, mas ia atrapalhar meus planos. Seus olhos são iguaiszinhos aos dele.
– Não ouse falar dele, sua bruxa desclassificada. – falou Kiva entre dentes.
– Tudo bem, já que prefere esquecer. Agora me diga, o que viu no coração de Thandur?
– Não é da sua conta! – gritou a jovem, perplexa por Marna saber desse fato.
– Ah, não seja birrenta, querida, e não precisa me olhar com essa cara de surpresa. Sei de muitas coisas… Se eu contar como cheguei aqui, você me conta o que viu. Que tal?
Como resposta, a feiticeira só recebeu um olhar de ódio. Contudo, começou a relatar sua história.
– Tudo começou no planeta de Teslar, como sabe. Eu pertencia à tribo dos Farah na Seh, inimiga dos Rockar. Porém, eu não me considerava uma Farah e nem teslarniana. Desde os sete anos, as crianças Farah estudavam magia negra com o mestre da comunidade. Sendo eu a mais promissora do grupo, meu mestre me mandou a uma das mais importantes missões: infiltrar-me nas tribos inimigas. Fazia com que confiassem em mim, repassava informações e, em poucos meses, essa tribo era
invadida e destruída. Ao longo dos anos, a missão foi se tornando enfadonha e, com quinze anos, já especialista em estratégias, resolvi que não seguiria mais ordens. De ninguém.
“Matei todos. Envenenei os mantimentos e todos morreram sem nem mesmo saber como. Então, apareceram os Rockar. Acompanhei vocês durante semanas, arquitetando um plano para me infiltrar. Decidi que me encontrariam desacordada no deserto, desmemoriada, sabendo somente meu próprio nome. Quem iria resistir em ajudar? Porém eram espertos.
Desconfiaram e, somente você foi ingênua o suficiente para me acolher. Morei três anos com os Rockar, e mesmo assim não confiavam em mim. Perceberam do que eu era capaz. Matei seu irmão e fugi”.
“Viajei durante dois anos, conhecendo cada quadrante, aprendendo magia proibida com os melhores mestres. Assim que os superava, matava-os. Enganava uns, roubava outros. Um dos meus melhores roubos foi um bracelete de Newho, cuja pedra está no seu colar. Então, quando atravessei os Mares Boreais, encontrei Agas’B. Com um rei
mesquinho e desatento, uma população fraca e desprotegida, era o lugar perfeito para me instalar. Mudei de nome, construí a Fortaleza dos Ossos e espalhei historinhas de terror na cidade. Logo, todos foram embora, e somente a escória permaneceu”.
– Durante minhas viagens adquiri uma impressionante quantidade de conhecimento. Aprendi que o Coração de Thandur tem propriedades variadas, dentre elas mostrar o passado e o futuro a quem o possui. Agora é sua vez de dizer o que viu no Coração.
Marna se recostou em uma estante e esperou Kiva falar de sua visão. A jovem, insatisfeita com aquela situação e com o ódio correndo por suas veias, ficou em silêncio. Sabia que fora das ruínas, já era madrugada. Contudo, o fato de encontrar a feiticeira, não estava nos seus planos. Precisava de um novo e, enquanto contasse o que Marna queria, ganhava tempo para pensar em alguma saída. Kiva suspirou
longamente. Olhou ao seu redor, cruzou os braços na altura do peito e começou a falar.
– Você sabe que meu povo procurava por aquele veículo de um quadrante superior que caiu em Teslar há séculos. Achei-o a alguns quilômetros de minha tribo, dois anos depois da morte de meu irmão.
No centro do amontoado de metais, encontrei o Coração de Thandur. Quando o segurei, ele me mostrou seu último possuidor, um garoto jovem, ruivo, de olhos verdes. Quando estava ultrapassando o quadrante 2, chocou-se com um meteorito e caiu. Enquanto o veículo ultrapassava a atmosfera teslarniana, o garoto acabou se desintegrando por causa da velocidade da queda.
“Depois, me vi sentada ao lado daqueles metais, olhando para uma pedra vermelha. A visão também me mostrou um pedaço do futuro. Caos e destruição. E, por fim, me vi lutando com você, Ninarah”.
A feiticeira sorriu e recomeçou a andar.
– Que relato mais breve. Poderia ter sido mais detalhado. Mas tudo bem. Assim que retirá-la de você, saberei o que omitiu.
Com um gesto rápido, Marna lançou na jovem uma esfera negra de energia e se escondeu atrás de uma estante. Kiva, elegantemente, deu um passo para o lado, desviando-se da magia. Descruzou os braços e de dentro do relicário, uma fumaça perolada começou a envolver seu pulso. A fumaça tomou uma forma alongada e plana, que lançava faíscas amareladas. Era uma espada eletrificada, ricamente trabalhada.
Kiva começou a correr por entre as prateleiras, atrás de Marna que, de súbito, lançou uma rajada de vento, derrubando-a. Com um salto, levantou-se apontou a espada para a feiticeira, liberando uma descarga elétrica que, por milímetros, não a acertou. Esta, por sua vez, sussurrava encantamentos em uma língua desconhecida, agitando as mãos para o alto, provocando tremores sobre os pés da adversária. Kiva tentou equilibrar-se, mas acabou caindo, dando oportunidade para Marna atacar.
A feiticeira envolveu a teslarniana em uma redoma mágica, erguendo-a no ar. Movendo o braço em círculos e pronunciando feitiços, a redoma começou a se encher de água. Kiva erguia a espada o quanto podia, evitando que a arma
encostasse no líquido.
– Sabia que a água é condutora de eletricidade? – questionou
Marna, rindo alegremente.
O Coração de Thandur começou a pulsar dentro de Kiva, como se estivesse vivo. Sentiu uma sucção e se viu atrás da risonha feiticeira, que, ao perceber a redoma vazia, ficou séria imediatamente.
– Teletransporte? – indagou para si.
– Há muitos segredos que você desconhece, Ninarah. – desdenhou Kiva, ao mesmo tempo em que afundava a lâmina elétrica no ombro esquerdo de sua inimiga.
O grito animalesco de Marna ressoou por toda a biblioteca. A feiticeira caiu de joelhos, procurando estancar a ferida, e, após alguns minutos, suas risadas insanas quebraram o silêncio.
– Se julga muito diferente de mim, Kivazinha? Acha mesmo que eu sou a malvada? Tenho uma má notícia para te dar, o universo não é dividido entre bons e maus. Não existe justiça, queridinha. Hahaha!!
Você não passa de uma traidora! Abandonou sua tribo. Fugiu quando eles precisavam do poder da pedra. Você não é diferente de mim! – berrou Marna, esticando a mão para Kiva, lançando um feitiço de paralisia total.
Kiva defendeu o ataque com a espada, que ricocheteou a magia para aquela que a lançara. Marna caiu para trás e ficou estirada, imóvel no chão.
Aproximando-se, Kiva sorriu, desfrutando daquele momento.
– E agora, Ninarah? O que vai fazer? Lançará raios pelos olhos? Que pena, para isso é preciso recitar as palavras certas e, neste momento, nem gritar você pode. Haha!! Que tal se eu a matasse bem devagar, vendo seu sangue escorrer pelas minhas mãos. Meu irmão finalmente estaria vingado.
A teslarniana ajoelhou-se ao lado da inimiga caída, fez a espada desaparecer da mesma maneira que foi invocada, retirou o punhal de lâmina curva de dentro da bota esquerda, e continuou.
– Sabe o que mais eu vi no Coração de Thandur? – perguntou Kiva, enquanto o medo de Marna era evidente nas lágrimas que escorriam pelo seu rosto pálido. – Eu vi esse momento. Me vi prestes a fincar essa adaga em você. Mas, ao contrário do que disse, não somos nem um pouco parecidas. Não vai ser eu a matá-la, não se preocupe, a gema me mostrou. Vê-la neste estado me satisfaz muito. Pra mim já é o suficiente.
Levantando-se, Kiva virou as costas para sua oponente, cobriu-se com a sua túnica, fechou os olhos e se concentrou.
– Espero nunca mais revê-la, Ninarah.
Como no confronto, Kiva sumiu diante de Marna, deixando a feiticeira paralisada chorando de raiva e sangrando.

***

O sol aquecia a relva de Curanaã quando uma jovem encapuzada surgiu do nada. Olhando ao seu redor, Kiva procurava localizar o castelo de Newho. Não muito longe, entre um pequeno vale, despontavam torres cinzentas.
“Já é de tarde aqui”, impressionou-se a teslarnina.
Caminhando por algumas horas, a teslarniana aproximou-se do castelo.
Não era muito grande, possuía muitas janelas e um jardim imenso.
Analisou as entradas e não avistou muitos guardas. Utilizando o mesmo plano que usara na Fortaleza dos Ossos, enganou os guardas e entrou no castelo.
A mobília era simples e de madeira, porém, não perdia para o quesito beleza; as cortinas de um tecido semi-transparente esvoaçavam acompanhando a brisa suave; flores enfeitavam as cômodas e mesas e um enorme tapete xadrez circulava a escadaria principal, feita de uma pedra clara. Subiu, silenciosamente, por ela e começou a procurar os aposentos principais. Passou por vários quartos simples e não demorou muito para encontrá-lo. O aposento era um pouco mais luxuoso que os demais. No centro do quarto, uma enorme cama com uma manta vermelha estava virada para as janelas; no canto; estantes repletas de livro ocupavam duas das paredes; em outra, vários porta-retratos pendurados mostravam duas garotinhas brincando, sorrindo e fazendo caretas.
Kiva sorriu e lembrou de sua infância. Descobriu também um banheiro com um enorme espelho e a pia forrada de potinhos contendo diferentes cremes. Dois roupões estavam pendurados em ganchos ao lado do chuveiro. Retirando seu relicário prateado com a Jóia de Landrakar do pescoço, estendeu-o na cama. Pegou seu punhal da bota esquerda e, com um golpe seco entre os seios, abriu uma ferida. Mordendo os lábios para conter a dor, afundou os dedos no corte profundo e retirou dali o Coração de Thandur. Limpou-o na túnica e o depositou ao lado do colar. O sangue escorria farto por entre suas mãos que tentavam inutilmente estancar o ferimento.
Olhou através da janela o entardecer. O roxo, laranja e rosa se misturavam no céu, formando uma mistura maravilhosa. No horizonte, viu um fugaz lampejo esverdeado quando o sol se pôs por completo.
Lágrimas corriam soltas pelo rosto belo e moreno de Kiva.
“Hora de ir para casa”.

-*-

Comments are closed.