Conto – Acaso ou Destino (por G.Brasman)

Um homem de meia idade corria por uma trilha na mata enquanto uma grande escuridão tomava o céu rapidamente atrás dele. Em sua sacola marrom de pano velho, carregava vários cogumelos colhidos na parte escura da floresta. Trazia na outra mão um arco de madeira nodosa e uma aljava de couro com sete flechas simples.

Um barulho, como se várias explosões estivessem ocorrendo, podia ser ouvido por quilômetros de distância enquanto a escuridão avançava mais e mais rapidamente.

O homem pulou por cima de um fino riacho de águas cristalinas, repletas de pequeninos peixes dourados, e aumentou a velocidade da corrida. Pouco depois, entrou em uma clareira e se dirigiu à pequena casa de madeira que ficava no centro do descampado.

Assim que abriu a pesada porta, também de madeira, sentiu em suas costas as primeiras gotas da tempestade da qual estava fugindo. Entrou e fechou a porta novamente.

– Prissei, é você? – perguntou uma voz suave de dentro da choupana.

– Sim Marim, sou eu! – respondeu ele retirando suas botas para não sujar o chão da sala com a lama da floresta.

– Não tem como te surpreender, não é mesmo meu amor? – falou o caçador com o par de calçados e a sacola na mão esquerda enquanto guardava o arco e a aljava em um grande prego enferrujado pregado atrás na parede.

Sua esposa então saiu de dentro da cozinha carregando um bebê de apenas oito meses no colo. Ele sempre se surpreendia como ela ainda mantinha a sua beleza de vinte anos atrás, mesmo já tendo parido quatro vezes. A última vez a dor foi dobrada devido aos gêmeos.

– Onde está meu rapazinho? – disse mostrando uma pequena escultura de madeira em formato de leão que ele mesmo havia esculpido na noite anterior. E falando com uma voz mais alta para que pudesse ser ouvido em qualquer um dos cinco cômodos da casa continuou – Wilgor! Trouxe um presente pelo seu aniversário de seis anos. Venha aqui meu garoto!

– Ele e a Aira estão dormindo. Brincaram o dia inteiro e quase nem pararam para almoçar – falou sua mulher enquanto lhe dava um beijo rápido no rosto.

– E Marna está limpando a Júlia que acabou de comer uma sopinha. O Júlio aqui é que está precisando tomar um banho gostoso! – complementou a bela mulher chacoalhando os longos e brilhantes cabelos negros enquanto fazia uma careta engraçada para o bebê, que soltou uma sonora gargalhada, contagiando sua mãe e seu pai.

Apesar das dificuldades e dos poucos recursos de que dispunham para sobreviver, aquela era uma família feliz. O casal e seus cinco filhos sobreviviam com uma pequena plantação e com a caça que Prissei conseguia na floresta.

Há cinco anos haviam se mudado para aquele lugar distante, vindos em um navio mercante. O reino de Agnia era um desafio e, ao mesmo tempo, uma esperança de vida melhor para o casal e seus filhos. Um planeta incrível onde praticamente todos os habitantes possuíam poderes mágicos e dons naturais. “O mundo mais naturalmente mágico que eu já vi” foi a frase que marcou a memória de Prissei quando conversava com seus amigos na taverna de sua cidade natal seis anos antes daquele dia.

Mas, exatamente por que os seres eram mágicos, seus serviços de ferreiro não eram tão necessários naquele mundo. Existiam homens e mulheres com todos os tipos de dons. Desde a capacidade de modelar os metais com o simples toque das mãos, como se o material fosse barro, até pessoas que controlavam o fogo e o calor mais habilmente do que os dragões de Kodomo. Ser ferreiro naquelas terras não era de grande valia.

Tentaram ainda vender nas feiras as lindas tapeçarias que Marim bordava com lã de carneiro, exatamente como sua mãe havia lhe ensinado. Mas, desde que nasceram os gêmeos, ela não conseguia produzir muitas peças.

Como jantar, apenas um caldo ralo feito com os poucos cogumelos que o chefe daquela família conseguira colher e algumas cenouras da plantação, já que nenhuma caça havia cruzado o caminho de Prissei durante toda a semana e a despensa da casa estava vazia. As poucas moedas de prata que tinham economizado teriam que ser utilizadas para comprar comida na feira na manhã seguinte.

Quando o sol raiou, todos na casa já estavam acordados e prontos para percorrer o longo trajeto até a cidade. A velha mula, o único animal da família, levava na garupa a pequena Aira de nove anos, com seu irmão Wilgor agarrado em sua cintura. Dois cestos de cipó forrados com pano limpo estavam encaixados na cela; um de cada lado do animal, levando os gêmeos Júlia e Júlio.

Marna, a mais velha das crianças, seguia pela direita. Marim andava pela esquerda. Prissei ia na frente puxando a mula. Todos seguiam muito felizes e o chefe da família entoava canções de esperança e magia que tornavam a viagem mais agradável para todos.

Naquele dia o céu estava claro e verde como nos melhores dias de verão. Em meio à feira, realizada em uma praça pavimentada com os poderes de transmutação de rochas do próprio curador eleito da cidade, existiam barracas e bancas com vários produtos.

Em uma delas a família negociava um pacote de grãos e algumas peças de carne salgada quando um enorme cavalo branco abriu caminho pela multidão. Sobre ele estava sentada uma linda senhora de olhos azuis e cabelos longos e dourados. A roupa azul combinava com seus olhos, aumentando a sensação de nobreza e poder que emanava da mulher. Um pedinte a abordou e foi prontamente atendido com três moedas de prata, o que representava uma quantia considerável para ser dada como esmola.

Ela então apeou e se dirigiu ao dono da banca perguntando se a sua encomenda de carnes de caça havia chegado. Antes que o comerciante pudesse responder, a mulher olhou espantada para Marna e disse:

– Mas que criança de beleza extraordinária, mesmo vestida com roupas tão simples!

– Não sou criança – respondeu ela fechando o rosto e complementou – vou fazer quatorze anos no próximo mês!

Com seus dentes perfeitos e brancos a mulher disse sorrindo:

– Desculpe-me linda ninfa terrena. É que para alguém com tantos anos de vida como eu, qualquer um que tenha menos do que vinte anos é uma criança.

Virando-se para Prissei falou polidamente:

– Sinto pela minha indelicadeza, é que sou muito espontânea e sincera. Deixem que me apresente. Meu nome é Argena.

Prissei se apresentou e também à sua família. Começaram a conversar como se uma amizade antiga já existisse. Eles ficaram sabendo que aquela mulher era uma famosa e rica vidente da cidade vizinha de Alkoran e que ela havia tido uma visão na noite anterior. Em sua premonição viu que, naquele dia, encontraria alguém com quem conviveria por muitos anos e para quem deixaria toda a sua fortuna quando morresse.

Quando viu Marna ela teve certeza de que a garota era a pessoa do seu sonho. Ela se ofereceu para dar uma vida melhor à menina, com educação, carinho e dignidade. Mas para isto a menina teria que ir morar com ela. Para demonstrar que tinha boa fé, ela daria o seu anel de topázio e uma bolsa com moedas de ouro para o casal.

Inicialmente, eles relutaram. Como poderiam trocar a filha por um punhado de ouro? Mas os argumentos a favor eram fortes. As economias deles estavam acabando e há meses que não conseguiam trabalho. Além disto, o inverno chegaria logo, acabando com a pequena plantação e diminuindo ainda mais a caça. A fome e a miséria eram inevitáveis.

Como pessoas honradas, não desejavam mendigar e tão pouco ter que apelar para subterfúgios, como roubo ou qualquer outra ação que viesse a prejudicar qualquer pessoa.

Pensando no futuro de sua filha, nas condições precárias em que viviam e na possibilidade de visitá-la sempre que quisessem, aceitaram a oferta. Mas com uma condição. Que eles fossem conhecer o lugar primeiro.

Visivelmente abalada, a vidente falou com tristeza na voz que talvez tivesse se enganado de pessoa. Em sua visão, ela servia à garota uma sobremesa especial de uma fruta que amadurece apenas uma vez por ano. E tinha certeza de que era naquela noite, pois a sobremesa estava pronta para ser saboreada em seu castelo.

A senhora então se despediu melancolicamente e montou novamente no cavalo. Rapidamente o casal decidiu que não poderiam perder aquela chance e, gritaram para que ele retornasse. Finalmente aceitaram a proposta.

A menina, que chorava copiosamente, foi colocada pelo seu pai na garupa do alazão. A vidente disse que retornaria dentro de uma semana naquele mesmo lugar para pegar os pertences pessoais da menina. Marcaram então para o mesmo horário e, fazendo seu cavalo galopar velozmente, sumiram em meio aos transeuntes.

Contentes, o casal e seus filhos voltaram para casa com uma mula nova e, no seu lombo, duas cestas cheias de alimentos caros. Haviam gasto todas as suas moedas de prata sem medo, uma vez que tinham o ouro e o anel de topázio que os sustentariam por meses.

Na semana seguinte voltaram cedo para a feira com os pertences da filha. Esperaram pacientemente sem que a mulher aparecesse. Já havia passado o horário do almoço quando Prissei resolveu perguntar para o dono da barraca sobre a sua cliente vidente, mas ele disse que aquela tinha sido a primeira vez que a vira e que estava prestes a dizer isto na semana anterior quando ela perguntou da encomenda. Como ela havia começado a conversar com o casal antes disto e depois foi embora, ele pensou ter sido um engano dela e não deu importância para o caso.

Preocupado o homem voltou e falou o que escutara do vendedor à sua mulher. Ela então começou a passar mal e quase desmaiou com o susto. Ele pediu uma garrafa de Água de Martrílio, líquido medicinal e muito caro, para o dono da banca ao lado. A esposa bebeu e permaneceu sentada em uma saca de arroz para melhorar.

Quando Prissei pagou a garrafa com o ouro da vidente, foi insultado por tentar pagar com uma liga comum que imitava o metal precioso. Ele tentou explicar e deu outra moeda de ouro. Além da recusa e dos insultos, ele também foi agredido com fúria pelo comerciante por tentar enganá-lo com moedas falsas.

Rapidamente os seguranças da feira se aglomeraram em volta da família e do comerciante para verificar o que estava acontecendo. O líder da guarda verificou várias moedas e constatou que todas eram falsas. Marim ainda tentou explicar o que só podia ser um engano e entregou o anel de topázio para o guarda para provar que podia pagar pela garrafa do precioso líquido.

Ele então examinou cuidadosamente o anel e, com um movimento brusco, o jogou violentamente ao chão, quebrando-o em dezenas de cacos.

– Isto não passa de vidro! – gritou. E com um movimento de cabeça para seus companheiros, complementou – Prendam estes vigaristas e levem-nos para o Conselho Julgador.

– Meus filhos! – tentou protestar a mulher com desespero no olhar – mas foi calada com um soco forte no estômago.

A revolta do marido também foi em vão. Três guardas pularam sobre ele no momento que tentou defender sua mulher. Os golpes duros o deixaram inconsciente e ensangüentado.

O casal foi condenado e preso por tentar utilizar moedas e jóias falsas para adquirir produtos e prejudicar os comerciantes locais. As crianças foram enviadas para uma casa de apoio aos necessitados. Duas velhas senhoras sem filhos adotaram Wilgor e Aira. Os bebês Júlia e Júlio foram adotados por um próspero comerciante de ovelhas.

A saúde de Marim se deteriorava rapidamente e, devido à sua constante revolta, ela permanecia trancada nas masmorras por muitos dias consecutivos. A umidade e a falta de higiene do local fizeram com que contraísse uma doença que a debilitou ainda mais. Em poucos meses ela faleceu.

Prissei não conseguia aceitar aquela situação. Apesar de ter sempre sido um homem honrado, justo e de boa fé, tinha sido enganado por uma mulher que nunca tinha visto antes, simplesmente por que confiava demais nas pessoas. Quando soube que seus filhos haviam sido adotados, uma raiva imensa tomou conta dele, que atacou dois guardas e foi surrado até desmaiar. O resultado foi a perda de todos os dentes e três dedos quebrados.

Um dos soldados da prisão, que gostava de torturar os prisioneiros, fez questão de falar para ele que sua esposa havia morrido e que o corpo só havia sido encontrado dias depois, quando o cheiro da morte emanava pela prisão. Como resultado da notícia Prissei bateu com tanta força a cabeça na parede que chegou a quebrar o osso da testa. O sangue banhou seu corpo e a loucura tomou conta de sua alma. Ele nunca mais falou com ninguém, até o dia em que morreu de inanição antes mesmo de completar um ano de reclusão.

A vidente desconhecida nunca mais voltou para aquela cidade e a jovem Marna nunca mais foi vista no planeta de Ágnia.

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