Conto – Coração de Herói (G.Brasman)

Para vocês, que sobreviveram ao TESTE V, parabéns. Sua recompensa está aí embaixo (nota: escrevi este conto em 2012 e, desde lá, não voltei a ele; nem mesmo para revisar o português). Espero que gostem da história… WA’PUMA!
G.Brasman

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CORAÇÃO DE HERÓI

– É melhor ver se estou apresentável – falou Uni vacilante para o seu reflexo no espelho.
Por um momento ela ficou parada, mirando a sua imagem. A luz esbranquiçada das pedras mágicas que iluminavam o hall da biblioteca deixavam a sua pele ainda mais pálida. O chifre de marfim espiralado em sua testa brilhou quando ela usou seus poderes telecinéticos para soltar seus longos cabelos, criando uma moldura cor de fogo para o seu rosto gracioso e fino. Ajeitou sua vestimenta branca de guerrina e suspirou, tentando buscar confiança e tranquilidade.
– É hora de enfrentar as consequências – disse ela virando-se para a porta.
Acima da grande porta de folhas duplas de madeira maciça, escrita na língua comum utilizada em todo o Multiverso, podia-se ler “Biblioteca da Torre I de Eve – Sejam bem vindos os que buscam o conhecimento”. Conforme havia sido orientada, soou três vezes o sino que fica ao lado da porta. Aguardou um instante e, novamente, soou o sino, mas desta vez apenas duas vezes. Aquela era a forma correta de informar ao mestre bibliotecário que um aluno desejava entrar.
Aguardou pacientemente, pois sabia que, àquela hora da noite, seria necessário que o mestre bibliotecário descesse do alto da torre, desabilitando e reativando as armadilhas mágicas e sistemas de segurança por onde passava. Era algo trabalhoso, mas considerado fundamental para a segurança do acervo das bibliotecas das quatro torres. Apenas o salão principal permaneceria sem segurança, e ainda assim, só durante o tempo em que ela ficasse lá dentro.
“Por mim eu ia embora agora” – pensou Uni, suspirando profundamente – “mas meu mestre de estratégias me expulsaria da Academia assim que descobrisse que eu descumpri suas ordens”.
Seus pensamentos foram interrompidos, quando o som de travas sendo abertas, quebrou o silêncio. E, pelo barulho, eram várias as travas. As pesadas portas abriram vagarosamente mas, apesar das dobradiças serem antiquíssimas, não emitiram nenhum ruído. Era apenas um detalhe, mas que deixou claro o cuidado dos mestres bibliotecários em zelar pelo silêncio.
No fundo do salão principal, uma figura feminina segurava um lampião com uma pedra mágica semelhante à do hall, o que deixava o ambiente com um aspecto fantasmagórico aterrorizante, fazendo um calafrio subir pela espinha de Uni e arrepiando os pelos da sua nuca. “Sei que não podemos usar velas em uma biblioteca, mas estas luzes me dão calafrio!” pensou.
 Lady Machado? – era assim que as pessoas chamavam a mestre bibliotecária da biblioteca do quadrante I. Tinha algo a ver com a família que, pelo que diziam, além de serem excelentes zeladores do conhecimento, também eram exímios guerreiros com o machado.
 Entre menina, não tenha medo!
Uni aproximou-se respeitosamente. Apesar de já ter visto Lady Machado várias vezes durante o dia, esta era a primeira vez que a via à noite. E por mais inacreditável que parecesse, a mulher parecia-lhe ainda mais bela. Mesmo à luz esbranquiçada do lampião, sua pele apresentava um tom jovial. Seus longos e bem cuidados cabelos negros combinavam com um belo sorriso branco como a lua. Usava, além de um vestido de tecido negro com detalhes prateados, dois brincos de argola e um cordão no pescoço.
 A que devo a honra desta visita? – perguntou gentilmente Lady Machado.
 Eu … quer dizer o mestre Daga me mandou falar com a Senhora – disse Uni, baixando a cabela encabulada – Ele pediu para lhe dizer que eu preciso conhecer a história da invasão de Jupebo.
 Mas este assunto é estudado no segundo período de aulas de estratégia. Em que período você está?
 Estou no primeiro Senhora. E confesso que já conheço um pouco sobre isto, mas é que …
 Você tem certeza que Daga lhe disse isto? – interrompeu a bibliotecária – Quais foram, exatamente, as palavras que ele usou?
 “Vá até Lady Machado. Diga que você precisa aprender sobre a história original da invasão de Jubepo, que deu origem ao Teste V” – disse Uni tentando imitar a voz grave do mestre Daga.
 Entendo! Só temos duas alternativas – disse a bibliotecária sorrindo – Ou você é uma ótima aluna e ele quer adiantar o seu estudo – ela fez uma pequena pausa e continuou – ou você aprontou alguma coisa das grandes!
 Senhora, eu … – Uni começou a se explicar mas foi interrompida por Lady Machado.
 Não precisa se explicar. Considerando a hora em que você veio me procurar, é por que deve ter sido a segunda opção. Só espero que tenha sido bem divertido! – a bibliotecária piscou e sorriu – E como hoje estou de bom humor, você poderá ler a história direto dos originais.
 Os manuscritos de Monjor? – disse Uni espantada, levando a mão à boca e arregalando os olhos.
 Isto mesmo. – complementou Lady Machado com um dedo na boca, como se pedisse silêncio – só não conte para ninguém, pois é um documento raro e não é permitido ter acesso sem uma permissão especial do conselho. – e sorrindo, finalizou – Mas como conheço sua família, vou abrir uma exceção. Agora, vou precisar lhe fazer dormir, pois o caminho até o alto da torre é secreto e apenas os mestres bibliotecários podem conhecê-lo.
Lady Machado não esperou pela resposta e, erguendo uma mão, jogou um pó reluzente no ar que, imediatamente depois de lançado, virou uma névoa e passou suavemente pelo rosto de Uni, que dormiu de imediato.
– O que aconteceu? – disse Uni abrindo os olhos algum tempo depois.
De alguma forma, tinha sido transportada para outro lugar, pois estava sentada em uma cadeira de madeira em uma sala sem janelas e repleta de livros por todos os lados. Uma porta de ferro negro, fechada por um número incrível de trancas, era a única forma de entrar. Os livros empilhados e espalhados pelo chão e pelas prateleiras eram visivelmente antigos, e nem todos estavam escritos na língua comum.
– Como é que eu vim parar aqui?.
– Como você veio até aqui não é importante – disse Lady Machado abrindo um baú de madeira e retirando um grande livro com capa de couro de dentro – O que importa apenas é que você está diante de um dos maiores tesouros guardados por esta biblioteca! – finalizou colocando o livro na mesa.
Uni pôde ler “Manuscritos de Monjor V – Período Pré Academia” antes da bibliotecária começar a folhear o livro. Em uma das primeiras páginas, havia uma ilustração de um homem alto e forte. Seus cabelos longos estavam penteados em um rabo de cavalo e sua barba era espessa. As roupas armas denunciavam que se tratava de um caçador. Com certeza, aquele desenho era de Monjor.
– Não é este… este também não… – dizia Lady Machado enquanto passava as páginas, até que ela sorriu e virou o livro para Uni – Aqui está! A história que inspirou Nopporn a criar o teste V depois que fundou a Academia. Escrita pessoalmente por um dos nossos maiores heróis! Este relato, apesar de curto, é um dos mais famosos e importantes de todos – diante da hesitação de Uni, ela a incentivou fazendo um sinal com as mãos – Vamos lá, não seja tímida. Leia tudo, inclusive as notas nas bordas e rodapés. São muito interessantes e não constam na cópia que vocês lerão no segundo período!
Uni apesar de estar muito surpresa, também estava extremamente feliz por ter aquela oportunidade. E, sem perder tempo, começou a ler o livro.

“Sou Monjor V e este é o sexto ano desde que começamos a batalha contra os Espectros. Há um ano minha esposa não vê seus pais e, por isto, amanhã ela partirá em um navio para o nosso planeta natal.
Nota: com ela irá um pedaço do meu coração e, em seu ventre, também irá nosso primeiro bebê.
Mas, em tempos difíceis como este, cada um precisa fazer o que estiver ao seu alcance para garantir um futuro para todos no Multiverso, e é por isto que ficarei aqui, onde sou necessário.
Apesar de Nopporn ter pedido para eu escrever as principais histórias que eu considero importantes, como ensinamento para os outros Guerreiros, ou Senhores de Castelo como ela costuma chamar, hoje em homenagem à minha esposa, resolvi contar sobre uma experiência que tive quando conheci a cidade onde ela nasceu.
Foi em uma triste manhã de sol. Pode parecer engraçado eu dizer que uma manhã de sol era triste, mas quando uma estiagem de nove meses assola a sua terra, qualquer dia de sol seria triste, pois era sinal de que a chuva, mais uma vez, não cairia.
Meu suserano, que tinha-me em grande consideração, dizia que eu era um dos melhores estrategistas que ele conhecia. Confesso que realmente aprecio muito a arte do planejamento, mas considero-me apenas uma pessoa que pensa antes de agir, o que já é muito mais do que muitos fazem.
Enfim, graças à isto, ainda estou vivo. Mas deixe-me contar desde o início. Fui incumbido de viajar até Jupebo , um dos feudos que mais contribuíram no passado para a capital, permitindo criar um estoque bastante grande de provisões. Minha missão era avaliar se os cidadãos de Jupebo estavam enfrentando algum problema devido à estiagem. Dependendo da minha análise, meu suserano enviaria ajuda e provisões.
Assim como eu, outros estavam sendo enviados para outros feudos com o mesmo objetivo. Logicamente deveriam ser homens de confiança para evitar que ocorressem análises tendenciosas. Foi assim que, depois de vinte longos e tórridos dias de cavalgada por estradas secas e poeirentas, avistei os morros que separam Jupebo do restante das terras do suserano.
Por incrível que pareça, depois de tanto tempo vendo uma paisagem acinzentada pela falta de água, fui agraciado com um dos mais belos cenários de todos os que eu já avistara em minha vida. Atrás dos morros, formava-se um vale verdejante e cheio de vida. Mais ao longe, distante talvez um dia a cavalo, era possível ver o azul do oceano. Era uma visão idílica. Um verdadeiro sonho em dias tão secos como aqueles. Até mesmo meu pobre cavalo, que há dias perdera o viço, apressou o passo, farejando o frescor de relva e água fresca.
Nota: meu amigo de quatro patas pareceu mais feliz do que eu.
Ele e eu fomos recebidos excepcionalmente bem, mesmo antes de eu apresentar a carta com o selo oficial de nosso suserano à Eric Barba Cinzenta, o responsável pelo feudo. Apesar de sua aparência dura – careca, extremamente forte, barba chegando ao peito e carregando um grande arco – ele era extremamente atencioso e educado. E, mesmo com a estiagem assolando também aquela região, em pouco tempo Eric apresentou-me os motivos para tanta fartura.
Com inteligência, os moradores de Jupebo aproveitaram a geografia local e construíram quatro barragens que represavam a água das chuvas. Também haviam, espalhados pela região, poços cavados pela própria população. Com sabedoria e parcimônia, a utilizavam para regar as plantações, para dar de beber aos animais e também para o uso doméstico. Mesmo após tantos meses de seca, apenas duas barragens estavam secas.
Além disto, pela proximidade com o mar, aquele feudo também contava com uma vila de pescadores, que os mantinha abastecidos em troca de grãos e carne de ovelhas e gado. Outro fator importantíssimo, é que os moradores daquela região conseguiram desenvolver uma forma de cultivar abelhas e, desta forma, conseguir mel em grande quantidade, possibilitando também a fabricação de vários tipos de hidromel.
Nota: uma das melhores garrafas de hidromel que eu já tomei em toda a minha vida foi na residência de um senhor chamado Bako. O sabor do seu hidromel é, simplesmente, divino!
Jupebo era uma terra de prosperidade e fartura sem igual. Eu, que fui mandado em socorro àquela cidade e todo o seu feudo, acabei por conseguir conhecimentos que contribuiriam enormemente com os outros feudos do nosso suserano.
Mas, por acaso do destino ou por sabedoria de nossos deuses, alguns dias antes de eu voltar para casa, conheci aquela que seria a maior das bençãos em minha vida. Minha querida esposa Varla e eu nos apaixonamos um pelo outro assim que nos vimos. Passamos muitos momentos agradáveis juntos na cidade, onde pudemos nos conhecer melhor e confirmamos nosso amor.
Nota: alguns dizem que a letra V depois do meu nome refere-se à ela. É uma versão romântica e que eu gosto muito.
Contudo, estes dias não foram apenas de alegria, pois em uma tarde, um cavalo trotou para dentro da cidade e, em seu lombo, estava debruçado um homem vestido como um pescador.
– Olhem, uma espada ícsia! – eu disse, apontando para as costas do pobre homem, onde estava cravada a arma.
Nota: sem dúvida, pelo tamanho e visível peso, era uma espada de um homem bastante forte.
– Nossa vila de pescadores – murmurou o pescador no cavalo – foi destruída. Dez navios … soldados ícsios … chegarão aqui pela manhã.
O pobre coitado, após repassar a mensagem, tombou morto no chão.
– Dez navios ícsios! – desesperou-se Eric – Cada um tem capacidade para trinta soldados. Estamos perdidos!

– Quantos homens há na guarnição da cidade? – perguntei.
– Dez cavaleiros, dez lanceiros e mais dez arqueiros. São trinta contra trezentos. Não temos a menor chance…
– E os fazendeiros, pastores e comerciantes – continuei – Quantos homens conseguiriam levantar uma espada?
– Sem contar os mais velhos. Temos uns oitenta, talvez noventa, se considerarmos alguns dos mais jovens.
– Então, comigo, somos em cento e vinte e um. E graças ao nosso amigo pescador – “que os deuses levem sua alma para o descanso” rezei em silêncio – temos a vantagem de saber que eles estão vindo.
– Mas eles chegarão aqui de manhã! Temos apenas uma noite! – exasperou-se Eric.
– Será mais que suficiente, meu amigo! – concluí com um sorriso enquanto postava minhas mãos nos ombros de Eric para acalmá-lo – Eu tenho um plano e, se você concordar, acredito que conseguiremos acabar com eles!
O plano era arriscado, mas havia chances de conseguirmos barrar o inimigo naquele local sem termos muitas perdas. Não poderíamos deixar que seguissem feudo adentro pois, certamente, chacinariam toda a comunidade e pilhariam tudo o que conseguissem.
Nota: desconfio que a estiagem também assolava a ilha de Ícsia, pois há décadas não ouvia-se falar de pilhagens por aquelas bandas. Talvez por isto a guarnição do feudo fosse tão pequena.
Expliquei à Eric o que deveríamos fazer e ele concordou rapidamente, Convocamos todos e separamos em grupos. As mulheres, crianças e idosos, deveriam se abrigar até que tudo estivesse acabado.
Pedi para que dois garotos enterrassem o pobre pescador que trouxe-nos a mensagem. Os demais homens, com a minha orientação, durante toda a noite prepararam o terreno e algumas outras surpresas para a chegada dos invasores. Não haveria tempo para cavarmos trincheiras, e mesmo que o fizéssemos, seriam de pouca utilidade contra trezentos soldados treinados. Eric sugeriu que deixássemos alguns barris de hidromel à vista na entrada da cidade, assim os soldados poderiam se embebedar e nós aumentaríamos as nossas chances. Mas como conhecedor de guerras, sei que os soldados só bebem depois de conquistar a vitória. Além do mais, eu tinha outros planos para os barris.
– Veja aqueles pássaros saindo do bosque. Foram espantados por alguma coisa – sussurrou Eric um pouco depois do amanhecer.
– Eles estão chegando – confirmei – Já consigo ver o movimento entre as árvores.
– Você tem certeza que vai dar certo? – perguntou Eric com a voz tremulante.
– Eu só tenho certeza que levaremos alguns deles antes que um dos nossos caia! – afirmei.
O que se seguiu depois disto, seria belo, se não fosse trágico. Tudo seguiu conforme o planejado. Em primeiro lugar, esperamos que o exército avançasse pelo campo. Como eles se dividiram em seis blocos de cerca de cinquenta soldados cada um, a primeira armadilha atingiu apenas um bloco.
Um pouco antes do amanhecer, regamos o capim, entre o bosque e o início da vila, com vários barris daquele delicioso hidromel. Alguns soldados pareceram sentir o odor agradável, mas só se deram conta do que estava acontecendo quando várias flechas em chamas atingiram o capim, ateando fogo imediatamente e consumindo um grupo inteiro de soldados. O susto, e as pessoas correndo sem rumo, fizeram com que a formação de blocos fosse quebrada. Um deles correu até um cocho onde as vacas normalmente bebiam água. Mas nós havíamos trocado a água por hidromel.
Nota: pelo menos este soldado deve ter sofrido menos que os outros, pois após a explosão, ele permaneceu caído e não mais levantou.
Como nos mantivemos escondidos, os soldados não sabiam quem atacar. Em seguida, conforme o plano, utilizamos algumas catapultas simples que construímos com grandes galhos durante à noite e, por detrás de algumas casas, jogamos dezenas de colméias repletas de abelhas. O caos se instalou entre os soldados, que dispersaram sua formação e começaram a correr para todos os lados. Não conseguiam voltar para o bosque, pois o hidromel estava ainda em chamas.
Alguns correram para a direita, mas com um sinal de Eric, os pastores provocaram um estouro na manada de bois e ovelhas, que pisotearam e bateram nos soldados. Outros correram para a esquerda, bem abaixo de uma das barragens. Durante à noite, havíamos preparado a barragem e retirado vários dos suportes, deixando-a pronta para desabar quando puxássemos quatro longas cordas. A represa cedeu e soterrou alguns inimigos. Outros, foram arrastados pela água sobre machados, foices e ancinhos que preparamos no solo. Durante todo este tempo, nossos soldados, e até alguns cidadãos de Jupebo, lançavam flechas sobre os soldados ícsios. Dois lavradores, que lançaram as abelhas e estavam mais perto dos soldados, resolveram lutar corpo o corpo, mas foram trucidados pela fúria do inimigo.
Apesar de tudo aquilo, ainda havia mais de cem ícsios em pé e em condições de luta. Finalmente, havia chegado a hora do confronto. Como a água da barragem havia apagado grande parte do incêndio, nossos lanceiros e nossos cavaleiros, que haviam se escondido no bosque, surpreenderam o inimigo por trás. Eu, junto com Eric e todos os outros homens da vila, avançamos com ferocidade sobre os ícsios que, fora de formação e surpreendidos pelo ataque dos nossos soldados em sua retaguarda, não conseguiram se defender.
Nosso pessoal atacava em dupla, o que compensava a falta de experiência em batalha. Nossos arqueiros, agora postados nos telhados das casas, derrubavam um inimigo atrás do outro. Estávamos nitidamente em vantagem. Até que o impensável aconteceu. Um pequeno grupo organizado, pelo que pareceu ser o líder de todos eles, conseguiu abrir uma brecha e arrombou a porta da igreja, provavelmente na intenção de se proteger no lugar mais resistente da cidade.
Eram não mais do que trinta homens, pois os outros poucos ícsios sobreviventes estavam sendo derrubados como moscas. Mas o desespero tomou conta de todos nós, por que dentro da igreja, considerada por todos como sólida e segura, estavam as mulheres, crianças e idosos do feldo. Fora, setenta e oito sobreviventes do feldo e dez soldados ícsios que se renderam e estavam agora amarrados,
Gritos, choro, reféns e lamentações se seguiram a horas de agonia e de impasse, até que o líder deles decidiu sair, sendo seguido pelos outros. Cada ícsio levava um refém sob a ameaça das lâminas de espadas e machados.
– Libertem meus soldados! – gritou o líder ícsio – e nós iremos embora.
– Vocês nunca irão embora. Os que se renderem, serão levados para a prisão. Os que insistirem, serão mortos.
– Você não está em condições de negociar nada! – vociferou o homem apertando a lâmina da espada contra a garganta de uma menina – Ou vocês nos deixam ir, ou vamos matar todas elas!
– Deixem que vão – sussurrei para Eric – eles foram vencidos!
– Você não entende? – disse ele para mim entre dentes – se forem embora, voltarão com mais soldados. E nós não teremos chance.
– Podemos pedir ajuda da capital para reforçar a guarnição – insisti.
– Levaria muito tempo. Quando chegassem, todos nós já estaríamos mortos! – respondeu Eric cerrando os punhos e olhando diretamente para o Ícsio. Os nós de seus dedos estavam brancos com a força de sua raiva.
– Mas eles vão matá-las!
Eric pegou um arco e uma flecha e mirou diretamente na cabeça do líder, sendo seguido pelos arqueiros restantes. Os demais homens cercaram os soldados ícsios. As mulheres e crianças, reféns, choravam e gritavam.
Encurralados, alguns ícsios soltaram suas armas e se jogaram no chão, com as mãos na cabeça em sinal de que estavam se entregando.
– Seus estúpidos covardes! Levantem-se e lutem … ou morram tentando! – gritou o líder ícsio apertando ainda mais a lâmina na garganta da menina.
– Pai! – gritou a criança olhando para Eric quando sentiu a lâmina cortar-lhe a pele.
Os olhos de Eric brilharam, com lágrimas e raiva. A flecha estava pronta, com a cabeça do ícsio como alvo. Os olhos verdes da filha o encaram, suplicando por ajuda. Eric gritou e disparou.
A flecha de Eric acertou o meio dos olhos do líder ícsio, mas um momento antes, ele deslizou a lâmina da espada pela garganta da filha de Eric. Ambos caíram no chão ensanguentado. Alguns dos ícsios foram apenas feridos e outros reféns também não resistiram. Mas a maioria sobreviveu.
Apesar da vitória, e dos vários anos sem que nenhum outro ataque ocorresse, uma tristeza enorme se abateu sobre a vila. Permaneci ainda alguns dias em Jubepo para auxiliar nos funerais e certificando-me que as reservas de água e mantimentos restantes seriam suficientes. Além disto, também foi necessário um tempo adicional para que Varna e eu pudéssemos nos casar.
Eric nunca mais foi o mesmo. Raramente aparecia em público. Dias depois, o encontrei sozinho, sentado no banco da igreja.
– Foi uma decisão difícil – disse eu respeitosamente.
– O bem da comunidade vem em primeiro lugar – Eric começou a falar com lágrimas nos olhos – Não tive escolha. Estaríamos mortos se eles escapassem.Uma semana depois, Eric se retirou para as montanhas, onde mora sozinho até hoje. Nunca mais soube de seu paradeiro. Isso aconteceu há muitos anos, mas ainda hoje, lágrimas vêm aos meus olhos quando lembro da tristeza do pai, que arriscou a vida de sua própria filha, em nome de algo maior. Este sim, é um verdadeiro herói, que usou o maior de todos os poderes, o poder da escolha, em prol do bem comum.
Despeço-me agora com votos de que o coração deste herói encontre a paz na certeza de ter realizado o que era certo e finalizo este relato com a esperança de que seja de alguma utilidade para os futuros Senhores de Castelo.
Nota: Varla querida, rezo todos os dias para que não tenhamos que passar por nenhuma situação parecida, pois não sei se teria forças para continuar. Mas tenho convicção que, apenas os que estão prontos para atos como este, são dignos de serem chamados de Senhores de Castelo.”

Uni terminou de ler com lágrimas escorrendo em sua face alva.
– Minha querida – disse amavelmente Lady Machado – agora você entende por que foi mandada aqui?
– Sim, senhora – falou Uni de cabeça baixa, enxugando as lágrimas na manga do roupão branco de guerrina – e acho que não estou pronta para isto.
– Que bom que pensa assim – disse a mulher sorridente – significa que sua lição foi aprendida. Agora, descanse, pois amanhã, será um novo dia.
Uni viu Lady Machado sorrir e levantar a mão, de onde veio uma nova lufada de pó brilhante que se tornou névoa e acariciou seu rosto. Quando acordou, estava em sua cama, no dormitório da Academia. Cansada, viu que ainda era noite e voltou a dormir. Afinal, amanhã seria um dia novo, e completamente diferente.

G.Brasman

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